domingo, 29 de abril de 2018

Fogo

Da primeira vez você talvez persista no erro por onze anos. Vai tentar reduzir-se para caber no outro. Vai moldar-se para que ele te aceite, e não vá embora assustado com sua intensidade, risada alta e paixão pelas causas impossíveis. 
Mas ele eventualmente irá, e você perceberá que não ganhou no fim da história, e que se perdeu tentando escrever um 'felizes para sempre'. Para que haja um 'felizes para sempre' é preciso pelo menos dois, é preciso ser plural. Ele nunca foi. Após esse ponto final você perceberá que vale mais ser a bruxa, e assustar logo meninos criados por vó; indecisos; rasos e mentirosos. Você vai poupar seu tempo sendo você mesma. Vai gozar no primeiro encontro sabendo que pode ser o único. Então que pelo menos seja verdadeiro. Você vai queimar aquilo que for breve, sem desperdiçar sua melhor maquiagem, sem precisar memorizar nomes, investir tempo, dinheiro e amor. Enquanto eles acham que é desespero, você vai saber que é economia. Não temos tempo a perder com metades, porque somos inteiras e só o todo nos interessa. 
 Vamos queimar os fracos no fogo de nosso amor próprio, como queimaram nossas antepassadas nas fogueiras da ignorância. Muitos deles passarão, mas só quem valer a pena e te aceitar como é vai ficar. São por eles que devemos errar, e se é para errar que seja por excesso de si mesma. Não se reduza, é impossível conter as forças da natureza.


quarta-feira, 25 de abril de 2018

Quando a dor acaba?

As palavras endureceram em meu peito, e não quererem sair. Pesam, gelam, engasgam-me. É cansativo carregá-las, portanto meu cansaço é tremendo. Mas como poderia ser diferente? Elas estão tão paralisadas e atônitas quanto eu. Somos incapazes de descrever o que aconteceu, agora que  tudo está claro, e portanto o passado tornou-se escuro.
Outras palavras foram usadas para ferir, enganar e manipular. Não consigo mais acreditar no que me dizem, nem confiar em quem as profere. Ele disse-me que não queria relacionamento, que casamento não era para ele. Que eu era ruim de cama. Que apesar de todas as minhas qualidades não me queria mais. Que não queria filhos.
Também disse que me deixaria bem, com uma grana e o carro. Deixou-me o carro, quer levar a geladeira – como se dela precisasse para ser frio e calculista – e um fogão de indução, tão útil quanto certas partes do seu corpo.  Disse-me palavras tão duras quanto eu achava que era sólido nosso amor. Descobri que havia apenas  o meu amor, o resto era interesse, manipulação e egoísmo.
Quando ele se foi, eu o julgava um perdido, alguém que não estava pensando direito, em sofrimento como eu. Pedi a sua mãe que cuidasse dele, e aceitei todas as suas condições para que o fim desse a ele um conforto financeiro que eu achava que ele jamais teria na alma: aprisionada num corpo disfuncional, corpo este que reside num lar donde outrora viviam o alcoolismo e a permissividade.
Descobri que sua loucura era outra: era a canalhice de um homem que mente para conseguir o que quer, um divórcio lucrativo, uma nova companheira interessante e  uma nova vida, sem aquela que ele tentou destruir. Ele arrancou minhas flores, minhas folhas, sufocou-me como se faz com ervas daninhas. Talvez eu seja realmente isso. Mas sou linda, e tenho raízes indestrutíveis.
Ele tentou matar-me com uma depressão, sem jamais demonstrar compaixão – paixão já não existia em seu vocabulário desde sempre. Foi cruel e  traiu-me de todas as formas, traiu meu corpo todas as vezes que me recusou em anos de relacionamento e quando foi se aconchegar em outro abraço, enquanto eu sucumbia em nosso quarto e ele fingia dormir. Também quando eu pedia que ele olhasse para mim, e ele simplesmente ignorava. Traiu-me quando somente depois de muito choro, meu é claro, e muita súplica, ele assumiu que havia algo errado, e eu soube que estava triste, mas que não estava louca como ele insistia tantas vezes.
Eu estava triste porque ele me enlouquecia com tantas mentiras: meus olhos e meu tato sabiam, mas minha audição era confundida diariamente com palavras vazias de um amor que parece nunca ter existido.
Ele me conduziu e  manipulou – e depois de meses longe de sua teia eu descobri: os anos que havia perdido; que ele se separou porque tinha uma outra em sua vida (desde quando?); que ele me usou como eu desconfiara. Que as palavras não são confiáveis. Que eu era boa, e portanto boba e que nunca mais seria assim. Matei-me por dentro, para conseguir continuar a viver.


sexta-feira, 20 de abril de 2018

Verbos

Tenho o dom da palavra, ou sua maldição. Elas povoam minhas ideias e transbordam meus olhos, minha boca, saem pelas pontas dos meus dedos. Sou toda verbo. Falo, faço, amo, me orgulho. Não sou pretérito, sou presente, e não me interesso muito por me conjugar no futuro. Vou dizer-te o que sinto, sem me preocupar com seus adjetivos, modos, e sua sintaxe. Fuja se não souber me conjugar, interpretar minhas palavras retas. Não quero que você seja uma oração subordinada, ou apenas um objeto. Quero que seja sujeito, ainda que oculto. Que se flexione e se escreva em mim, sem planejar ser best-seller. Nada te exijo, porque pouco posso dar. Não uso interrogações quando não posso lidar com seus pontos finais e frases curtas, e seu silêncio. Você é verbete sem definição, quero que continues assim, independentemente do tempo, do modo, dos advérbios.


quinta-feira, 19 de abril de 2018

Não quero um namorado

Não quero um namorado. O que preciso é de uma boa cia para olhar as estrelas, mesmo quando elas estiverem encobertas por densas nuvens. Alguém pra ouvir minhas piadas e bobagens, e que ria delas ao invés de me repreender. 
Quero alguém para passar as noites em claro, ao meu lado, sobre mim e dentro de mim. Alguém que me roube o sono, e me deixe cansada a semana toda, com um sorriso nos lábios, e uma vontade de mais. Quero alguém que pegue minha mão, mesmo que não tenhamos lugar nenhum pra ir. Que deixe meu olhar penetrar o seu, sem me perguntar o que é. Quero alguém que aceite minha intensidade, meus abraços, meus cuidados. 
Quero alguém que me convide para um cinema, mesmo quando ambos estivermos sem grana, e que acabemos ficando em casa bebericando uma cerveja e assistindo nosso próprio filme. Quero alguém que entenda que sou um universo, e que minhas nebulosas guardam mistérios, que podem ser explorados sem medo. Não preciso de um namorado, de alguém que caiba nos mesmos espaços que eu, que me dê um final feliz. 
Quero alguém que caminhe feliz ao meu lado, e que seja sincero ao fim da estrada. As estradas findam... Outras recomeçam. Não quero a ilusão de um relacionamento, as amarras, as dores, as pressões. Quero o sentimento que queima, que anseia. Não quero alguém para mim, alguém que seja meu... Quero apenas que sejamos nós... com um pouco mais de frequência, um pouco mais de nós.


quinta-feira, 12 de abril de 2018

Ele

Ter-te em meu abraço é por demais arriscado. Estarás muito próximo de meu coração, e talvez ele se abra em demasia e queira abrigar-te por tempos mais longos que duas garrafas de vinho e o segurar de minha respiração.
Eu te pedirei para ficar, e você ficará em meu peito, independente do que faça teu corpo.
Ter-te assim tão perto é perigoso, incontrolável. É como tentar deter o cheiro do café recém passado numa casinha na serra ao amanhecer.
Resisto, mantenho a distância... Temo apergar-me demais ao aroma irresistível, inomeável, e não palpável que existe entre nós.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Doença Terminal

Daí depois de mais de um ano tentando achar explicações para os seus sintomas, ela vai ao médico – o diagnóstico? CÂNCER.

Ela começa o tratamento na sexta-feira, no domingo ele diz que não a ama mais, mas que não quer tomar nenhuma atitude precipitada. Ela pede a ele que pense, que o ama. Na quinta-feira ela diz que não há relacionamentos perfeitos, e que apesar de todos os seus defeitos ela o quer ao seu lado. Ele responde que apesar de todas as suas qualidades não a quer mais.

Ele sai de casa, sem olhar para traz na quinta-feira seguinte, menos de duas semanas  depois do início de seu tratamento. Ela então mora sozinha, com seus amigos gatos. E cuida da vida que fora pensada para dois. Prossegue seu tratamento de forma intensiva. Além de sua doença, enfrenta a separação, o eco das palavras cruéis que ele dissera antes de partir; e a solidão. Exceto por sua mãe, ninguém de sua família parece perceber que sua doença pode levá-la a morte.

Não há visitas, não há telefonemas, não há mensagens de estímulo. Por vezes ela chora em soluços no colo de sua mãe.

Com o passar do tempo ela se acostuma à dor causada pela doença. Ainda sente a morte ao seu lado,  chamando-a como um amante lascivo que porá fim aos seus dias solitários. Ela opta por ignorar o convite, e aceita todos os convites para sair.

Ela não está curada, mas sabe que ficar deitada na cama não ajudará. Afinal, a  morte está a sua espreita – bons amigos e sorrisos a afastam.

Por vezes ela se perde, e flerta com as dores mais profundas: do abandono do marido, dos familiares – acostumou-se a decepção vinda dos homens, grosseiros, agressivos, dominantes. E mergulha da dor de sua doença. Sente febre, calafrios, não tem forças para se levantar da cama. Mas levanta-se assim mesmo.

Ela continua o tratamento para sua doença: aceita qualquer sugestão – benzedeira, chá de babosa, orações, meditação, água quente com sal. Se não ajudar, pelo menos não deve atrapalhar. Os tratamentos não atrapalhavam, mas as pessoas sim. Diziam: mas você tem que ficar bem; muita gente passa por problemas muito piores, e sobrevive. O que ela estava fazendo, senão sobreviver?

Estava sobrevivendo a algo que nenhuma dessas pessoas jamais tinha experimentado: um divórcio e uma doença, ao mesmo tempo.

Pausa para algumas perguntas: você já teve apendicite? Consiste na inflamação de uma carninha no final do intestino. Uma parada inútil, que mede, normalmente, entre cinco e dez centímetros. Se esse dedinho interno infecciona causa uma dor filha da puta, e pode levar a morte. Eu não senti tanta dor assim, fui trabalhar no dia, depois caminhei uns dois quilômetros para dar uma aula, e só depois fui ao médico... achava que se tratava de uma infecção urinária corriqueira. Outra pergunta: você já foi picado por abelha? Eu não. Portanto não sei o quanto dói, mas posso imaginar, porque fui ferroada por três maribondos cavalo, em uma mesma mão, e não consegui movimentá-la por uma semana. Além da picada de abelha doer – dizem que dói, e por analogia eu também imagino que sim, tem a merda do choque anafilático, e uma única picada pode levar a morte. Assim como a novalgina – um medicamento usado para analgesia que pode te matar assim: puff!

Então, voltando a ‘ela’... apenas ela sabia o tamanho de sua dor. Quando achava que iria morrer corria para os braços de sua mãe – para que ela a segurasse nesse mundo por mais algum tempo. A dor a deixava sensível, mais emocional que de costume, e por vezes ela vomitava. Vomitava inclusive em quem mais lhe apoiava, mas não era intencional. Ela apenas não conseguia controlar. E assim, entre vômitos, pedidos de socorro, medicação, terapias e colo de mãe o tempo foi passando. E os sintomas ficando cada vez mais espaçados. 

A morte ainda a rondava, e os comprimidos também. A Solidão tornara-se uma grande amiga, que a lembrava o tempo todo de como vencer: sozinha.

Os homens de sua família ignoraram sua dor – talvez ela fosse para eles um problema grande demais, uma dose muito grande de novalgina, ou uma picada de abelha. Preferiram afugentá-la como a um inseto inconveniente – com tapas, e movimentos bruscos, ou ainda virando um copo e prendendo-a em uma redoma asséptica. As mulheres, simplesmente a ignoraram, pareciam suspirar aliviadas – graças a deus que não é comigo. A mãe a pegou no colo, e a salvou.

A mãe contara com a ajuda de anjos de saia, e enormes corações, colhidos pela doente ao longo de sua vida. Salvaram sua vida. O pior havia finalmente passado. E os cacos podiam ser usados  na reconstrução.

 

Troque a palavra câncer por depressão.

Troque a palavra gatos por cachorros.

Fim.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

A gente é feito pra acabar

'O ser humano é um animal racional'.
Gostaria muito de saber quem foi a primeira ameba que começou a espalhar essa fake news. Ameba não, porque amebas não falam, portanto apenas um papagaio, um corvo ou um ser humano poderiam ter começado esse boato. Meu profundo conhecimento de ornitologia diz que papagaios e corvos apenas repetem o que foram ensinados - jamais me esquecerei do poema de Edgar Allan Poe e seu corvo agourento, Nevermore... Então, através da pouca lógica que tenho só posso presumir que foi um humanídeo que começou com essa falácia.
Entendam não estou dizendo que sejamos estúpidos ou incapazes. Nossos cérebros são máquinas elaboradíssimas capazes de intrincadas abstrações. Compomos sinfonias, criamos máquinas para quase tudo - cafeteira, batedeira, panificadora, sanduicheira, microondas. Jogamos nossos semelhantes no espaço sideral, e alguns de nós são tão criativos que criam a possibilidade de aquilo ser mentira. Adoro analisar esses cérebros exóticos, mas com uma certa distância porque tenho medo de ser contagioso.
Escrevemos poemas, e histórias de amor tão lindas quanto irreais. Do mofo tiramos a penicilina; de um medicamento pensado para problemas cardíacos, criamos a pílula do amor azul. De um xarope a Coca-Cola.
Mas mesmo assim continuo achando a gente bem limitado, viu?!
Pergunte-me por quê, por favor! Perguntou?!
Se não, vou responder assim mesmo. Demoramos uma vida para aprender lições as quais somos expostos todos os dias. Tipo, meus cachorros, todos, só tentaram atacar a churrasqueira uma vez: se queimaram e depois ficaram de boas, sentados olhando para mim enquanto como minha batata assada e meu pão de alho. Eles sabem que o olhar amendoado, mirando em meu coração e as orelhas murchas são muito mais eficientes e menos doloridos que um jump na churrasqueira.
A gente não. Quer um exemplo?!Todo dia a vida esfrega em nossa cara que tudo acaba um dia, mas a gente falta morrer cada vez que acontece.
A gente mama, o leite acaba, e a gente chora. O banho acaba, a gente chora. O achocolatado acaba, a gente chora. A primeira infância acaba, a gente sofre.
Tudo acaba, a gente já viu essa lição tantas vezes. Ela até já deve ter caido em alguma de suas provas, que também acabaram.
A escola acabou, e você chorou como uma criança sem leite, porque não iria mais ver seus amigos todos os dias.
Daí você percebeu com o tempo que aquelas amizades também acabaram... É a lei da natureza!
Daí a gente passa uma vida, tentando parecer para sempre jovem, bonito e interessante, correndo atrás de um amor que vai durar para sempre... Se esquecendo, que tudo finda.
Então pense aí, se tudo finda porquê simplesmente não aproveitar o intervalo entre o começo e o momento que os créditos começam a subir?! E eles vão subir, seja ao término de um filme ou na assinatura do divórcio, que encerra um casamento que, apesar do que você sonhou, não era pra ser eterno. O casamento, festa e relacionamento, sempre acaba: no fim talvez estejamos bêbados, infelizes ou mortos... Mas ele vai acabar.
Aproveite a jornada, pois ela se encerra no destino, e a viagem de férias também terá o mesmo... Destino.
Acabamos. Portanto nos acabemos em amor, em riso frouxo, uns nos braços dos outros, nos acabemos onde encontramos a felicidade, sem pensar no futuro. Ele é o presente do passado, e encontrar a alegria no agora é nos presentear.
Entregar-me-ei em queda livre aquilo que me faz feliz, ainda que ela dure uma hora. Afinal eu não deixo de pular carnaval porque ele acaba em alguns dias. Eu me permito saborear meu vinho mesmo sabendo que aquela é a última garrafa. O relógio bate meia noite e a festa acaba para a Cinderela... mas houve festa, houve dança e valeu a pena. Não porque ela viveu feliz pra sempre com o príncipe. A abóbora virou carruagem, os ratos se transformaram em cocheiros. E é claro que valeu a pena. Portanto acaba-se, na alegria e nos braços de um amor que te faz feliz; vire aquele copo de cerveja com sede; deixe o sol invadir a sala e acabar com a escuridão.
E que ao fim você perceba que tudo valeu a pena.
the end.

domingo, 1 de abril de 2018

Soldado ao chão


Hoje é domingo, de Páscoa. Acordo após ter ido pra cama cedo, no dia anterior. Raridade eu ir para cama, e principalmente dormir no dia anterior: quase sempre caio no sono depois de já ter virado abóbora.
Acordei no sobressalto, sem alarme, mas com o latido dos meus cães que avisavam que já era 8:30, e que o rapaz que iria se livrar do mato do meu quintal que já ameaçava arranhar o céu chegara. E eu ainda estava vestida com meus trapos de dormir, com muito sono nos olhos, sem alimentar os canídeos e soltá-los no gramado para se aliviarem. Pulei da cama ignorando a coluna que lateja sem parar, e peguei o celular para olhar as horas. Eu ainda tinha mais 60 minutos para fazer tudo.
Enquanto me aliviava, aproveitei para dar uma olhada nas redes sociais, aproveitando os cinco minutos de ócio matinal, contados no relógio. Fui surpreendida por um texto bem realista cujo título já diz muito “Não me chame de guerreira” (link: https://microcelebridade.com/2018/03/12/nao-me-chame-de-guerreira/).
Enquanto eu tentava recrdar se eu tomara banho na noite anterior, antes de ser roubada pelo sono, assistindo um episódio de uma série, que também não lembro qual, fiquei pensando nesse rótulo que nós mulheres modernas carregamos como burros com viseira: forte, guerreira, heroína. Eu os ouvi com muita frequência nos últimos meses, enquanto eu chorava deitada no chão por ter fracassado mais uma vez, sem conseguir me reerguer. As pessoas diziam você é forte, você vai ficar bem.
O único pensamento que me ocorria era: me levante daqui, me dê sua mão. Sou fraca, sou frágil, não consigo sozinha, não sei o que fazer. Hoje percebo que segui, não porque era forte, mas porque não tinha outra opção. Guerreira? Sim, mas ao solo, após ter perdido a batalha, os anéis e muitos dentes para a vida.
Segui, e já consigo me abrir, com muita falta de vontade, para pessoas que me perguntam: o que você faz da vida? Suspiro, e em milésimos de segundo penso no que a vida faz de mim, e em que tipo de resposta esse ser a minha frente deseja. Não me importo com a segunda opção, e começo a rezar meu rosário: sou servidora pública federal (não trabalho na Cidade Administrativa); professora por formação e paixão, e atuo como autônoma na área nas 'horas vagas'.
Claro que vem sempre a cantada de “Hum, então você vai me ensinar...” a qual eu sempre respondo, com a pouca munição de paciência que as inúmeras batalhas me permitiram manter, e digo: claro, mas não negocio meu preço; qual a sua disponibilidade de horário? Se o carinha está realmente interessado, ele ignora o meu sarcasmo – o que quase sempre acontece; e continuamos com o papo de borracha, até eles saberem que: além de dois empregos, que consomem 46 horas da minha semana, passo pelo menos 3 horas do meu dia atrás de um volante; moro sozinha, e também sozinha cuido dos afazeres domésticos (lavo, limpo, cozinho, faço supermercado, sacolão – não arrumo a cama e não passo roupa 'porque a vida passa, e a gente nem vê). Cuido do meu time de futsal canino – comida, carinho, banho, passeio. Faço pilates, yoga, aula de violão, terapia. Visito minha mãe duas vezes por semana, e vejo minhas amigas. Ainda escrevo um blog.
Daí vem a pergunta, mas como você dá conta – e eu nunca tinha pensado de fato nisso, preferia 'cuspir' um 'nem eu sei' e acabar logo com isso. Mas o texto de hoje me fez pensar, e a resposta é: eu não dou conta. Faço porque eu preciso, e faço tudo porcamente.
Cozinho apenas aos domingos, e como a mesma comida (rica e balanceada, pelo menos) a semana toda, na minha estação de trabalho, em frente ao computador do trabalho. Mesma estação de trabalho que por vezes, serve de cama, tanto para eu dormir quando tive insônia na noite anterior, quanto para eu chorar, quando a angústia me transborda e eu soluço sem ao menos entender o porquê.
Meus cães, que passeavam todos os dias, e tinham seus pelos escovados e lavados pelo menos duas vezes por mês parecem agora membros de um grupo de reggae aposentados: gordinhos, e cobertos de dread, com as vacinas praticamente em dia. Saem para passear sempre que eu chego em casa antes das 21:00 e meu corpo não está muito dolorido das quedas. Mas recebem e dão amor como outrora.
Minha casa coleciona pêlos de cachorro; as vidraças estão embaçadas; há aranhas vivendo nos cantos, e os plafons se transformaram em cemitérios para insetos distraídos. Reclamo de cansaço durante a aula de pilates; anseio pela yoga nidra durante a prática semanal. Pratico violão só quando dá.
Lembro de molhar as plantas apenas quando elas já estão murchas, contrastando com o mato verde e até florido do jardim, do quintal, de minhas pernas, e de todas as partes de meu corpo que não depilei com laser.
Vou empurrando tudo com a barriga, que cresce a medida que recorro a comida e a bebida para 'dar conta de tudo', até último instante. Já me acostumei a limpar a casa antes da visita chegar. A andar com o carro na reserva. A não ter comida na geladeira, a dormir quatro horas por noite, a afagar meus dogs enquanto respondo minhas mensagens profissionais.
Acostumei-me a comprar roupas na loja baratona no caminho do estacionamento onde deixo meu carro para ir trabalhar, a ver minha mãe entre as minhas aulas. A fazer terapia apenas duas vezes por mês, porque não tenho grana e porque só tenho horário segunda-feira às 21:00. A ver meus sobrinhos bem menos que gostaria. Aprendi a sentir falta dos meus irmãos. Aprendi a ser mais ou menos em tudo. A baixar minha expectativa.
Dou conta de tudo porque aceitei que preciso seguir, mas que vou fazer apenas o que tiver ao meu alcance. Rio quando meu pão murcha após sair do forno; quando um cão come alguma planta. Dou 'bom dia' as aranhas que dividem os cantos comigo. Compro os legumes e frutas que posso encontrar no supermercado. Olho para minha cama sem arrumar há meses e vejo o livro que comecei a ler na noite anterior, sem a marcação da página onde deveria recomeçar, e penso: que bom, preciso mesmo relembrar o plano de Guy e Faber, e se há de fato um plano.
Somos guerreiros sim, detonados o tempo todo. Não está dando certo para ninguém, e aprender a conviver com isso é que nos faz dar conta: me transformei numa máquina de aceitar minhas limitações e fracassos. Se a barriga parece grande, é porque deve estar mesmo – troco a roupa para esconder, ou saio com a barriga a mostra mesmo. Afinal pelo menos parte de mim vai chamar atenção.
Entenda, não está perfeito para mim, nem para ninguém; eu não dou conta; estou dando cabeçadas por aí fazendo o meu melhor, mas só quando eu posso – às vezes faço meu pior, ou não faço nada e fico deitada no chão, coberta de baba de cachorro enquanto choro; aceitando que às vezes vou ser uma bosta mesmo; que isso não vai de fato fazer diferença nenhuma - importante é seguir tentando. E seguir tentando é seguir conseguindo sobreviver, mesmo se a conta não fechar; se você atrasar o pagamento; se cortarem a água e a luz; e se o carro parar na rodovia. Tens pernas.

cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu ...