segunda-feira, 9 de abril de 2018

Doença Terminal

Daí depois de mais de um ano tentando achar explicações para os seus sintomas, ela vai ao médico – o diagnóstico? CÂNCER.

Ela começa o tratamento na sexta-feira, no domingo ele diz que não a ama mais, mas que não quer tomar nenhuma atitude precipitada. Ela pede a ele que pense, que o ama. Na quinta-feira ela diz que não há relacionamentos perfeitos, e que apesar de todos os seus defeitos ela o quer ao seu lado. Ele responde que apesar de todas as suas qualidades não a quer mais.

Ele sai de casa, sem olhar para traz na quinta-feira seguinte, menos de duas semanas  depois do início de seu tratamento. Ela então mora sozinha, com seus amigos gatos. E cuida da vida que fora pensada para dois. Prossegue seu tratamento de forma intensiva. Além de sua doença, enfrenta a separação, o eco das palavras cruéis que ele dissera antes de partir; e a solidão. Exceto por sua mãe, ninguém de sua família parece perceber que sua doença pode levá-la a morte.

Não há visitas, não há telefonemas, não há mensagens de estímulo. Por vezes ela chora em soluços no colo de sua mãe.

Com o passar do tempo ela se acostuma à dor causada pela doença. Ainda sente a morte ao seu lado,  chamando-a como um amante lascivo que porá fim aos seus dias solitários. Ela opta por ignorar o convite, e aceita todos os convites para sair.

Ela não está curada, mas sabe que ficar deitada na cama não ajudará. Afinal, a  morte está a sua espreita – bons amigos e sorrisos a afastam.

Por vezes ela se perde, e flerta com as dores mais profundas: do abandono do marido, dos familiares – acostumou-se a decepção vinda dos homens, grosseiros, agressivos, dominantes. E mergulha da dor de sua doença. Sente febre, calafrios, não tem forças para se levantar da cama. Mas levanta-se assim mesmo.

Ela continua o tratamento para sua doença: aceita qualquer sugestão – benzedeira, chá de babosa, orações, meditação, água quente com sal. Se não ajudar, pelo menos não deve atrapalhar. Os tratamentos não atrapalhavam, mas as pessoas sim. Diziam: mas você tem que ficar bem; muita gente passa por problemas muito piores, e sobrevive. O que ela estava fazendo, senão sobreviver?

Estava sobrevivendo a algo que nenhuma dessas pessoas jamais tinha experimentado: um divórcio e uma doença, ao mesmo tempo.

Pausa para algumas perguntas: você já teve apendicite? Consiste na inflamação de uma carninha no final do intestino. Uma parada inútil, que mede, normalmente, entre cinco e dez centímetros. Se esse dedinho interno infecciona causa uma dor filha da puta, e pode levar a morte. Eu não senti tanta dor assim, fui trabalhar no dia, depois caminhei uns dois quilômetros para dar uma aula, e só depois fui ao médico... achava que se tratava de uma infecção urinária corriqueira. Outra pergunta: você já foi picado por abelha? Eu não. Portanto não sei o quanto dói, mas posso imaginar, porque fui ferroada por três maribondos cavalo, em uma mesma mão, e não consegui movimentá-la por uma semana. Além da picada de abelha doer – dizem que dói, e por analogia eu também imagino que sim, tem a merda do choque anafilático, e uma única picada pode levar a morte. Assim como a novalgina – um medicamento usado para analgesia que pode te matar assim: puff!

Então, voltando a ‘ela’... apenas ela sabia o tamanho de sua dor. Quando achava que iria morrer corria para os braços de sua mãe – para que ela a segurasse nesse mundo por mais algum tempo. A dor a deixava sensível, mais emocional que de costume, e por vezes ela vomitava. Vomitava inclusive em quem mais lhe apoiava, mas não era intencional. Ela apenas não conseguia controlar. E assim, entre vômitos, pedidos de socorro, medicação, terapias e colo de mãe o tempo foi passando. E os sintomas ficando cada vez mais espaçados. 

A morte ainda a rondava, e os comprimidos também. A Solidão tornara-se uma grande amiga, que a lembrava o tempo todo de como vencer: sozinha.

Os homens de sua família ignoraram sua dor – talvez ela fosse para eles um problema grande demais, uma dose muito grande de novalgina, ou uma picada de abelha. Preferiram afugentá-la como a um inseto inconveniente – com tapas, e movimentos bruscos, ou ainda virando um copo e prendendo-a em uma redoma asséptica. As mulheres, simplesmente a ignoraram, pareciam suspirar aliviadas – graças a deus que não é comigo. A mãe a pegou no colo, e a salvou.

A mãe contara com a ajuda de anjos de saia, e enormes corações, colhidos pela doente ao longo de sua vida. Salvaram sua vida. O pior havia finalmente passado. E os cacos podiam ser usados  na reconstrução.

 

Troque a palavra câncer por depressão.

Troque a palavra gatos por cachorros.

Fim.

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