sexta-feira, 19 de julho de 2019

Há dias

Há dias em que não abre as janelas. Teme que lhe fujam as últimas forças; assusta-lhe a possibilidade que pule o corpo, mal conduzido por sua mente pérfida. Não as abre por medo de tocar-lhe o sol, espantar de sua pele o cheiro da tristeza, da mágoa mofada que carregou consigo durante as  últimas semanas.

Há dias em que não cobre o rosto com pó e carmim. Receia que vejam a casca, e não seu interior profundo e quebrado, e colado. Colado tantas vezes que já não lhe sobram partes inteiras, é tudo junta, é tudo encontro, é tudo um pó metamorfo que, apesar de pó, inunda lhe as frestas – mas lembrem-se, não lhe cobre as rugas, nem as manchas.

Há dias que ela se entrega a cama, não porque não tenha mais forças – apenas por estar cansada. Fatigada de viver em sua pele, tão mal tratada, mal amada; excessivamente desejada – por motivos epiteliais, tão diferentes daqueles que carrega em suas tatuagens. Ela, que tanto ama, inclusive a si, não aceita que sua pele seja maior que sua alma, e que a julguem por isso. O presente é o que vem dentro do pacote, e para isso é preciso entrega, é preciso rasgar os papéis bonitos – é preciso receber.

Nesses dias, tudo fecha. Ela se vê nublada, trovoada, precipitação.

Há dias ela está assim, mas nesses dias ela é tempestade que não se segura, e passa avassaladora sem pedir licença, sem pedir desculpas – sem sentir essa culpa que tentam imprimir a ela. Nesses dias, ela se fecha, olha para dentro, para sua dor, e vê que aquele cisco que tanto a machuca já parece pérola, e será pérola – apesar de hoje  apenas doer.

terça-feira, 16 de julho de 2019

A corda acorda.

Eu dou corda para as pessoas, por que gosto de ver até onde elas têm a capacidade de chegar. Umas, para nosso alegria, chegam muito além do que esperávamos. Transformam-se, movem-se e evoluem, arrastando quem está ao seu redor consigo. Seja pelo exemplo, seja pelos cabelos. Gente do bem quer ir além, e levar todo mundo junto, para um lugar onde o mundo é de amor, de aceitação, respeito e individualidade, sem individualismo. Outras pessoas, por outro lado também chegam muito além do que esperávamos, indo mais profundo que o próprio fundo do posso. Chafurdando na lama apodrecida, se alimentando dela, e puxando para baixo quem quer que se aproxima para matar a sede. Eu dou corda - sempre. Serei alçada a novas alturas; puxada para baixo; poderá haver um duro e embativo 'cabo de guerra' ou verei a pessoa se enforcar no próprio emaranhado. Se for arrastada para um novo patamar, serei grata. A força desprendida por quem nos quer por perto é extrema. Segurar a mão do outro e puxa-lo pra cima é um ato de bravura, de amor e de força, que só quem está mais que comprometido com dias melhores pode realizar. Podem puxar-me para baixo, e como já dizia minha avó, para baixo todo santo ajuda. Mas meus pés, eles estão cravados no chão. Cientes de sua força, de minhas garras e da concretude do chão sob minha pele. Derrubar-me já não é tão fácil assim. O cabo de guerra pode ser interessante, puxa de um lado, puxa do outro. Se houver equilíbrio podemos ficar bem ali, sem o conforto que nos torna fracos. No cabo de guerra vai haver combate, mas pode haver colaboração. Há fortalecimento e a noção real de sua força e do quanto você está apto a ceder. É divertido, é intenso, é força bruta. Mas meu lado humano gosta muito de dar corda e ver o outro se perder, ou se revelar em suas teias de mentiras. Eu finjo acreditar em nomes, histórias, abstrações. Eu sorrio e me visto da boa moça que de fato eu sou: mas nem todo mundo merece o meu melhor, não é mesmo?! A esses dou a corda para que se enforquem, fantasmas vazios que sempre serão.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Vê dois quilos de picanha porque hoje eu vou me esbaldar

Eu ando triste, e sempre que esse sentimento encontra morada em mim eu faço o exercício de tentar encontrar a parte que me cabe nesse caos. Não encontro, porque não há como evitar o que vem do outro. Somos responsáveis por nossos atos, e nossas expectativas, mas não há jeito bonito de falar de assédio, e é isso que me tem entristecido.

Sofri minha primeira tentativa de abuso aos 4 anos, quando, em um velório, um homem bêbado tentou me puxar para dentro de um banheiro. Fui salva por minha mãe, que sem palavras segurou o meu outro braço e, ainda calada, me arrastou para longe dali.
Aos 6 fui assediada, a 200 metros de casa, por dois garotos com o dobro da minha idade. Aos 9, na escola, após ter tido minha bunda apertada por um garoto mais velho, no caminho para o bebedouro, tive que ouvir a professora, a quem me reportei, dizer que eu tinha provocado.

Aos 13, no caminho pra escola, fui mais uma vez apalpada por um estranho. Triste. Ultrajante. Dilacerante. E ainda assim, sou grata por não ter tido experiências piores. Né?!

Mas essas situações teriam ficado no passado, se de fato tivessem ficado no passado. Aqui, de onde eu me olho agora eu sou uma mulher, sem grandes atributos: nada de ser a mais linda, nem a mais gostosa, nem sexy, nem a mais abusada... Nada. Talvez eu seja divertida, a que fala alto demais, beirando a esquisitice, a que tem um comentário pra quase tudo. E é assim que quero ser.

Portanto, mesmo que a sociedade quisesse me culpar, como segue culpando vítimas - por seus vestidos curtos, por estarem bêbadas, por serem bonitas demais, ousadas demais, mulheres demais - não poderia. Sou muito fora de padrão pra encaixar.

Importante ressaltar: vítimas de assédio e abuso só existem por que existem assediadores e abusadores, e não o contrário.

Apesar de saber disso, e lutar pelo direito de sair por aí vestida como eu quiser, tenho me escondido dentro de roupas largas, tênis baixos e camisetas de malha. Usado pouca maquiagem. Quase tudo em mim grita: me deixe em paz. Outro dia me perguntaram a razão para meu corte de cabelo, e a verdade é que eu o corto assim para evitar, pelo menos um pouco, a aproximação de homens babacas. Funciona, às vezes.

Menos do que gostaria, é verdade. Hoje, de dentro de um jeans desbotado, uma camiseta surrada e camisa de flanela amarrotada - além da linda combinação de alpargatas e meias de pilates, a cara de ressaca e sem maquiagem, tive que ouvir de um 'nem sei como nomear' gracejos quanto a minha aparência. Ele faz isso há anos. Chama de linda com a cara de quem me arranca a roupa, só com o olhar, e principalmente quando dou o azar de esbarrar com ele no elevador, ou sozinha em um corredor. Hoje eu disse 'dá para parar?' e segui meu curso.

Depois de 16 anos entre um relacionamento e outro, e agora, assumidamente em carreira solo, perdi a conta dos assédios sofridos. E não importa minha reação: se eu xingo, se ignoro, se mudo o caminho, ou as roupas que visto. Se corto meu cabelo, ou se assumo meus quilos extras: eu estou sozinha, sem um homem a quem os abusadores tenham que respeitar.

Os pseudo elogios que eu ouvia na rua, agora surgem escondidos das esposas nas festinhas, nas mídias sociais, em corredores, no meu próprio celular. Afinal, eu estou disponível, e meu 'homem' não se enraivecerá se sua propriedade for um pouco... Dilapidada.

E o assédio tem esse poder de nos manter caladas, envergonhadas, entristecidas. Com medo de gritar aos quatro cantos do mundo e ser julgada e condenada de pronto: seja pela esposa, pela professora, ou pela tia que vai dizer - mas cê tá sozinha, que mal tem? Deixe ele falar, ele estava só te elogiando. Ah minha filha, cê nem é tão bonita assim, tá querendo é aparecer.

O assédio carrega com ele o conflito de homens que podem tudo, e mulheres que se calam, e muitas vezes se julgam entre si. E pra piorar, além da tristeza por ser vista, desde os 04 anos meramente como um pedaço de carne a ser consumida, eu carrego em mim uma raiva latente, e crescente por todas as vezes que fiquei calada, enquanto um chefe me chamava na sala dele pra me dar um chocolate, que eu descartava na sequência, e dizia: não conte para ninguém, tá?! Todas as vezes que um conhecido me olhou dos pés a cabeça e teceu comentários sobre meu vestido, minhas pernas, ou o quanto o 'cara' que  me 'pegava' não estava a minha altura. E como chovem homens puxando papo nas redes sociais, cinco minutos depois de eu ter comentado algo sobre sexo.

Sim, não é porque o assédio é horrível em todas as searas possíveis, e que eu tenha penado com episódios e mais episódios dele em minha vida que eu não goste de sexo. Apesar de assédio estar ligado a sexualidade, a gênero e a perceber o outro como caça, eu não me traumatizei nesse nível.

E sei que posso fazer o que quiser com meu corpo - e faço. Mas 'o que quiser' é o que EU quiser, e não o babaca, que acha que meu corpo deve ser protegido, mandando, regulado e usado por homens.

Tá ruim ser mulher, tá horrível andar por aí cercada de outras mulheres tão raivosas e tristes como eu, por estarmos cercadas por uma sociedade machista, reacionária, em declínio e por isso mesmo apavorada e agressiva. Sei que tivemos avanços, mas nunca vi tantas mulheres de fibra sendo diminuídas e quebradas de dentro para fora, e também de fora para dentro. Nos sentimos aprisionadas, perdidas feito Alices em um país, em um planeta, em uma realidade sem tantas maravilhas assim.

E no fim, ainda temos que ouvir: tá brava, deixe eu cuidar disso pra você! E sem perder o réu primário vamos seguindo, tentando nos proteger, sem matar e sem morrer. Sendo ridicularizadas, reduzidas, e sem saber o que fazer.

cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu ...