domingo, 26 de setembro de 2021

Quem sou?

Ver-nos pelos olhos do outro e, então me sinto tão apequenada e defeituosa que talvez fosse melhor que nem existisse.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Nasce um Milagre (o maior de todos)

 Eu imaginei que Mila nasceria no dia 24/07, com 39 semanas de gestação. Por nenhuma razão lógica, só porque eu queria que ela nascesse na lua cheia. 

Mas ela não nasceu com 39 semanas, nem com 40. 

Nós a esperamos tranquilamente, até que os protocolos médicos disseram que não era mais 'tão' seguro esperar.

No dia que completamos 41 semanas de gestação fomos pro hospital, Neocenter, escolhido por ser uma maternidade que adota práticas de 'parto adequado', além de ter enfermaria individualizada, e aceitar equipe externa. (Meu plano A era o Sofia Feldman, pelo qual nutro uma admiração sem tamanho ... quem sabe da próxima vez?)


Era domingo, dia dos pais. 

Na sexta-feira anterior eu havia tomado um shake laxativo, na esperança de estimular o trabalho de parto, o que não ocorreu, e só me deixou o dia todo com dor de barriga.  No sábado, a Flávia, minha enfermeira obstetra, veio até em casa fazer o descolamento de membrana. Ela disse, assim como minha ginecologista, que meu colo estava maduro, macio, mas ainda sem dilatação. Esse procedimento também não iniciou o TP.

Do domingo, acordamos sem alardes - era uma bela e ensolarada manhã de agosto, com seus ventos tradicionais. Nem parecia que um novo universo estava prestes a nascer.

Almoçamos num lugar que eu adoro: pratos enormes de deliciosa comida vegana. E lá pelas 15:00 fomos pra maternidade. 

Pais tranquilos que somos, antes de entrar no hospital ainda fomos bater pernas pelo bairro Cruzeiro, visitar um supermercado, comprar chinelos.

Eu estava começando a sentir alguma coisa, uma brisa de contração.

Fomos pro hospital, passamos pela triagem com a enfermeira e esperamos por algumas horas até uma consulta com o corpo médico. 

Enquanto esperava, pela Mila e pela consulta, a gente conversou, riu (de minha parte, com uma barriga de 41 semanas de gestação, ri de fazer xixi na calça) nem me lembro mais do quê. Avaliamos as outras gestantes com critérios nada médicos, e esperamos mais um pouco.


A avaliação foi rápida, e constatou 2cm de dilatação, num colo maduríssimo. Por estar com 41 semanas fui admitida no hospital, para realizar a indução.

A indução não era parte do meu plano de parto. Mas o meu plano de parto era como meu desejo de Mila nascer dia 24/07: apenas um desejo - o pano de fundo para todas as nossas decisões foi a segurança dessa pequena.


Quando a Flávia chegou, acelerou o processo que avaliaria as condições vitais da Mila antes de iniciar o procedimento.

Começamos a indução, que consiste na introdução de um comprimido de misoprostol no colo do útero, às 20:45. 

Eu precisava ficar por uma hora, 60 minutos, um tanto de segundos, deitadinha na cama. E assim o fiz. 

Enquanto isso, me empanturrei de mais comida, que agora vinha também em grandes quantidades, mas não era tão maravilhosa quanto a servida no nosso almoço especial.


Logo após sair da cama, toda a comida do dia resolveu abandonar o meu corpo: eu tenho crises de vômito e diarréia por dor (vide minhas cólicas menstruais na adolescência) e por ansiedade. Apesar de tentar fingir que não, eu já estava sendo acometida por ambas.


Me alojei no pequeno banheiro da enfermaria, e por lá resolvi ficar. E fui me despindo aos poucos: das vestes, dos pudores, e de minha racionalização. Eu ainda não sabia, mas em breve eu seria um bicho, observado de longe por uma Núbia sem julgamentos, sem medos, desperta.


Depois de algum tempo no banheiro, cheguei na porta, e falei pra um Arthur sonolento: eu tô só te avisando que eu tô bem, viu? 

O que ele sabiamente entendeu como: o pau tá quebrando. 

Desse momento em diante as imagens em minha mente ficam menos claras. Vejo tudo através do vapor da água quente do chuveiro. Da penumbra, das ondas que vinham, sem trégua, me dobrar ao meio, e me fazer dar voz - literalmente - ao animal humano que carrego em mim.


Ainda na enfermaria, a Flávia viu que eu pulara diretamente para a fase ativa do parto, sem aquelas contrações espaçadas. Mila estava vindo rápido, após um final de gestação bem preguiçoso.


No banheiro da enfermaria eu desenvolvi um trajeto, que envolvia as barras fixadas na parede, o chão (sim, desci até o chão - com a cara, não com a raba), e me debruçar sobre o vaso sanitário. Serpenteei por esse percurso durante um tempo, que podem ter sido minutos, horas ou séculos... Não sei.

Então fui transferida pra Suíte PPP (Puta que Pariu, pari!).

Não sem, no caminho de um alojamento ao outro, descer até o chão por ser dobrada por uma contração, mostrando toda minha malemolência e nudez, e assustar o moço que bebia água no corredor, e que sumiu dali feito mágica.


No novo quarto tive que refazer minha rota: chuveiro, chão, barra, vaso sanitário. Em alguns momentos de lucidez eu pensava: eu tô com a cara no chão de um banheiro de um hospital - quantos micróbios tem aqui?! Em outros eu olhava bem no fundo dos olhos do Arthur, e tentava dizer 'eu ainda estou aqui. Eu tô bem. Eu tô aqui.'

Mas as palavras não saiam. Era um rugir, um gemer, a vocalização do nascimento de um universo. Como Aslam criando Nárnia com seu canto.


As pessoas conversavam comigo, se apresentavam. Perguntavam. Eu só pensava 'essa pessoa não tá vendo que eu tô ocupada aqui?'

Quando a doula chegou, ainda não conhecedora de minha rota, se sentou no vaso sanitário: sem nenhum pudor,  com uns dois empurrões, e nenhuma palavra eu a expulsei de lá. 

Às 00:45 a médica que havia ministrado a indução veio me avaliar, eu, aquele bicho selvagem prestes a me partir ao meio e parir outro bicho igualmente selvagem (só agora eu sei). Eu estava então com 7cm de dilatação, recebi os parabéns, e lembro de uma parte distante do meu cérebro ter susurrado: 'não se anime, a parte final da montanha é a mais difícil de escalar, e alguns, mesmo perto do topo não conseguem chegar. Se entregue, não pense'.


Perguntaram-me se eu queria a piscina: Grunhi um 'sim'  em resposta. 

Sei lá como manejaram encher a piscina e me deixar no chuveiro ao mesmo tempo, mas em algum tempo, que não sei qual, lá estava eu: rosto, barriga e joelhos para fora d'água; ouvidos submersos para eu não ouvir meu chamado ininteligível por minha filha.


* A piscina estava forrada com um plástico, e uma parte dele estava caindo. Eu tentava 'consertar' aquilo, e me espantava por aquela trinca na Matrix não incomodar mais ninguém (minha lua em virgem tava gritando). 


De repente eu consegui pedir pra sair, precisava 'ir ao banheiro'.

A Flávia sugeriu o banquinho de parto. Eu aceitei, afinal aquele era meu primeiro parto, e ela é a profissional que escolhi pra me contar sobre as minhas alternativas.


Disseram-me que a fase final do expulsivo durou uns 15 minutos... A sensação que tive foi de que 'se' Mila nascesse, já nasceria formada na faculdade. Eu me retorcia, gemia, vocalizava cada expiração. Apertava as mãos de um companheiro que se mantinha atrás de mim, firme, enquanto meus pés patinavam num chão molhado.

Eu começava a querer desistir quando a Flávia pediu pra que eu me tocasse: senti um pedacinho da cabeça do meu bebê - foi ao mesmo tempo mágico e angustiante, não poderia mais voltar atrás (já não poderia há muito tempo, mas só naquele momento eu de fato me dei conta). Eu dizia estar cansada, e não aguentar mais. Pela primeira vez em horas, usando palavras. Fui incentivada pelas pessoas que escolhi para estarem comigo naquele momento, e tive a certeza que tinha escolhido as pessoas certas.


Quando percebi já havia uma plateia no quarto: médico obstetra do plantão, enfermeiras, e minha equipe (EO e doula).


Suspiro ao dizer que não lembro de fato como soube que deveria fazer força como se a vi(n)da da minha filha dependesse daquilo, mas fiz. E ela escorregou para esse mundo, ainda dentro da bolsa, literalmente um airbag para protegê-la em sua chegada a esse mundo tão do avesso, mas bom.


Li em alguns lugares que apenas um a cada 80.000 bebês nascem empelicados, eu queria que ela fosse um deles, mas era apenas mais uma daquelas bobagens que a gente deseja. Ela é o 'UM' em um infinito pra mim. A única possibilidade, e que se danem as estatísticas. Mas foi lindo vê-la sair da bolsa já em meus braços, e me tirar todo o ar do corpo, e me fazer acreditar, cética que sou, em amores a primeira vista. 


Mila mamou nos primeiros dez minutos de sua vida, e seu pai - que não assistiu o parto, e sim participou ativamente de cada decisão e cada fase - cortou seu cordão umbilical assim que ele parou de pulsar.


Mila nasceu as 02:21 da madrugada de uma segunda-feira, 09/08/2021, pesando 3590gr e tendo 51cm de altura, em um parto induzido, mas sem nenhuma outra intervenção. Posso dizer que foi um prazer poder parir como meu corpo quis, e receber nos braços o maior amor que meu coração já sentiu. Foi tudo perfeito.


Com o parto eu parti rumo ao desconhecido, me parti, e reparti, e agora vejo uma parte ensolarada do meu coração bater, repicar e fazer carnaval em outro corpo.

cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu ...