terça-feira, 27 de março de 2018

Quem te define?

Alguém disse que quem se define, se limita.  Concordo. Sou terráquea, humana, mulher, brasileira.  E o que isso diz sobre mim? Tenho 34 anos, sem filhos, divorciada, moro sozinha, com meus cinco cães. Sou vegetariana e cética: para quase tudo. Definir não é apenas limitar, é encurtar caminhos – portanto não pode ser (sempre) ruim. Por exemplo, durante anos minha comida favorita foi feijão tropeiro. Quase todo mundo sabe o que é, portanto não preciso dizer que: meu corpo liberava mais serotonina e endorfina, hormônios – substâncias produzidas pelo corpo de alguns seres vivos, responsáveis pela sensação de bem estar (impossível explicar essa parte) quando eu consumia um preparado feito à base de um tipo de semente cozida, produzida por uma planta da família Fabaceae;  de uma raiz de uma planta tuberosa da família das Euphorbeaceae ralada, desidratada e por vezes torrada; de partes cozidas de um ser vivo domesticado, mamífero bunodonte, não ruminante, possuidor de 44 dentes, patas curtas com quatro dedos cada, um focinho cartilaginoso (fofo, que parece uma tomada elétrica),  assassinado  (cruelmente, na minha opinião) com um tiro de ar comprimido; comumente acompanhado do óvulo não fecundado de uma galinha, ou deveria dizer célula sexual feminina de uma ave -  ser vivo vertebrado endotérmico caracterizado pela presença de penas, um bico sem dentes, oviparidade de casca rígida, elevado metabolismo, um coração com quatro câmaras e um esqueleto pneumático resistente e leve, da espécie G. Gallus e couve (porque eu cansei de explicar). Fica chato, né? Portanto, se digo que sou mulher, você já pode tirar algumas conclusões, certo? Elas podem até estar erradas, mas facilitam sua vida. Posso não ter “peito” no sentido de ter dois ovinhos de codorna no lugar de dois melões; posso ser trans (“respeita as mina”); e não gostar de manter relações sexuais com homem – mas tenho certeza que não foi essa a primeira imagem que veio a sua mente. E eu tenho peitos que enchem uma mão; sou XX – e não XY, e prefiro os ‘caras’ ao invés das minas, mas isso pode mudar um dia. Se digo que sou vegetariana, você imagina o quê? Que só como salada... pelas minhas curvas, você já sabe que não é bem assim; e talvez me pergunte: ‘mas nem peixe?’ Você pode não entender e não apoiar minhas razões, mas sabe que em algum momento da  minha vida decidi parar de me alimentar de outros seres vivos – que defino como portadores de olhos – para facilitar a classificação (batata não tem olho, alface não tem olho, cogumelo não tem olho). Mas existe um crustáceo, um tipo de bagre e a tal da hidra que não possuem olhos, e também não os como. E também não como tudo que não tem olhos... Imagino o que pensam quando digo que sou ateia. Uma conhecida, ao ficar sabendo, me disse: mas você é uma pessoa tão boa. Eu ri. Não porque não seja boa, mas fiquei imaginando o que se passava na cabeça dela: eu nua, dançando em volta de uma fogueira; fazendo sacrifícios de sangue para alguma entidade (que também não acredito). Sempre digo que toda generalização é burra – e morro de rir ao enfatizar a palavra TODA! Coloco-me assim na caixinha dos generalizantes, junto com todo mundo. Quem nunca o fez, que atire a primeira flor. Generalizações são perigosas, e podem ser discriminatórias e cruéis – pergunte aos negros escravizados em suas covas; as mulheres queimadas nas fogueiras; ao moleque pobre que o policial enquadrou na parede. Suas generalizações são bem vindas, deixe que elas encurtem caminhos, contudo não permita que elas destruam pontes. Defina-se, mas não limite o outro – e não permita que tracem linhas em torno de si.  Você é livre, e como te tratam pelas suas escolhas diz mais sobre o outro que sobre você. Quem se define, não se limita. Quem te define, se limita.

segunda-feira, 26 de março de 2018

Eu não preciso disso!

Em tempos de fim dos tempos é preciso saber o que é essencial. Precisamos manter nossas funções biológicas 'up and going', portanto beba bastante água, coma direitinho, se possível orgânicos - eu sou pobre, então aqui em casa só entra agrotóxico em forma de comida mesmo; evite açúcares, frituras e 'essa poha toda' que estamos cansados de ouvir. De fato não precisamos de muito: boa alimentação, bons amigos, boa saúde, umas roupinhas pretas no guarda roupa e um trocado pra manter isso tudo. Combinado? Da próxima vez que disser que não tem roupa pra sair lembre-se do saco que é separar, pôr pra lavar, estender, dobrar e guardar - passar jamais - a montanha de roupas que você tem. Se saber o que é essencial é o primeiro passo, saber o que você não precisa é simplesmente LIBERTADOR. Assumo que compro umas bobagens no impulso, mas estou de fato tentando analisar aquilo que não preciso. Entro no site de bugigangas da China e resisto a 99% do que tenho vontade de comprar. Resisto às comidas que sei que não vou consumir ao longo da semana. Descobri que não preciso passar roupa; estender a cama; me vestir para dormir; lavar a louça toda hora. Não preciso manter relações biológicas que me dilaceram; não preciso me preocupar demais com o amanhã. Não preciso de um amor romântico para ser feliz; nem de passaporte para ir pro Chile; não preciso, e provavelmente não vou me casar novamente. Não preciso seguir sua receita de bolo, porque simplesmente não é isso que quero para mim, eu fiz e o meu solou, e bateu-me como um chinelo de borracha na cara. Não preciso aceitar dos outros qualquer esmola, porque sei que mereço o sol. Saber o que você não precisa corta os nós que te fazem fantoche da vida, e a partir daí te colocam no centro. Te dão o controle... Peguete delícia? Quero. Envolver- me com ele emocionalmente: não preciso, principalmente se não for recíproco. Um novo quarteto de sombras? Lindo, mas não preciso, não vou usar. Mais um cachorro?! Não preciso, e não consigo cuidar. Limpar a casa todo fim de semana? Você já sabe a resposta. Ter um corpo sarado; filhos; carreira brilhante. Até posso, se quiser... Mas na real, eu não preciso disso para ser feliz.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Feiúra

Uma amiga me disse que adora homens feios. Rimos. Ensimesmei-me ao perceber que a  'feiúra' do corpo é subjetiva e pode ser disfarçada; a do caráter é incorrigível, indisculpável e cedo ou tarde vem à tona.

terça-feira, 20 de março de 2018

Ela

Apenas um louco não a quereria; somente uma alma quebrada a deixaria ir. E só sendo um insano em frangalhos para fazê-la sofrer. Quis o caos que seus destinos se encontrassem, e ele a desviasse de si mesma e a fizesse se perder. Descartou-a as margens de sua estrada como a uma guimba, que de tão usada se exauriu. Mas ela era toda chama: dos cabelos rubros que ele tentou apagar, aos pés descalços e vermelhos do chão por onde andara, sem jamais fincar raízes por demais profundas e imobilizantes.
Era fogo e não cinza, e se alastrou.  Era céu pesado em tardes de verão, e desabou causando a cheia.
Era como a lua, que mingua para se encher depois de luz, e nada conter, e tudo contar.
Somente um louco para não querer tomá-la nos braço: ela que é tato tatuado, fato consumado, livro escancarado.
Um triste para não não acompanhá-la: ela que dança ao som do vento, e que batuca desafinada em seu coração de carnaval.
Somente um perdido para perdê-la, ela que é raio em noite de tempestade, lampejo de luz na penumbra, pirilampo na beira d'água, incêndio de copa na floresta.
Somente um doente para não rir de sua gargalhada, com sua gargalhada, que a dobra ao meio, mas que não cabe em lugar nenhum: verdadeira, escancarada e sem vergonha.
Somente um estúpido para não ver sua sapiência, ávida por mais;  conhecimento que se espalha e acolhe.
Apenas um homem de lata, de nada, não reconheceria seu coração: bravo, partido, pulsante, e aberto - mas sem liquidação.
Quando estiver pronta, seus olhos profundos a revelarão e amor que descobriu por si, poderá ser novamente revelado - não o desperdice, pois ela é rio que gargalhada, e não volta do mar.

domingo, 18 de março de 2018

Queda


Hoje eu tive medo de morrer sozinha.
Depois de meses de choro, chorei hoje de alegria. Vi minha essência retornar para mim enquanto lavava a louça e ouvia meu cantor favorito: cantei aos berros e dancei sozinha no meio da cozinha. Senti que poderia ser feliz, genuinamente e comigo. Permiti-me ir lá fora, olhar para cima e deixar o sol me esquentar a face e me encher de vitamina D.
Limpei, lavei, organizei – deixei que o exorcismo fosse completo. Cozinhei tudo o que havia na geladeira – berinjela, pimentões, baroa, quinoa, beterraba… parecia um recomeço perfeito. Senti prazer ao olhar para área externa e vê-la limpa, apesar de destruída pelos meus cães.
Estava em êxtase divino, em outra dimensão – sabe aquela felicidade que a gente tem quando alcança um objetivo; quando se vê diante de uma paisagem enebriante, ou quando o filho da puta do contatinho que você é super afim te manda uma mensagem ou responde a sua de forma fofa - não com aquela secura que você precisa passar até um creme hidratante para ler? Pois era essa a sensação. Passei do divino ao humano, que precisa fazer aquele xixi básico, de um segundo para o outro.
Pois eu acabara de tirar uma travessa de caponata de berinjela do forno, que serviria de recheio para uma bandeja de cogumelos porttobello, comprada no dia anterior. Corri para aliviar minha bexiga que parecia apertada por um Exu, apesar do exorcismo.
Antes que pudesse terminar meu xixi, ouço um barulho na cozinha – ploft! Corro, me abotoando que qualquer jeito para saber se algo explodiu, se algum cachorro pulou janela adentro, ou se um Poltergeist resolvera me pregar uma peça: não, não. A cachorra devoradora de mangas ubá resolveu experimentar minha caponata de berinjela. Tudo bem, eu sei que meus cães não são confiáveis: mas eu não demoro nem dois minutos para fazer um xixi: no trabalho coloco minha marmita para aquecer por dois minutos e meio, saio, vou a casinha, e volto e o micro-ondas nem apitou ainda. Pensei que a demônia não descobriria a travessa fervilhante nesse tempo. Pois ela não só a descobriu como, sabe Allah como, puxou a travessa da bancada. Perdi toda a caponata e também a travessa, que se quebrou em centenas de pedaços – como meu coração ingenuo.
Além da raiva de ter perdido tempo picando cada ingrediente, revirando-os no forno durante mais de uma hora, sem sequer ter experimentado o resultado, fui tomada pela preocupação: a cachorra aspira comida com uma velocidade superior a velocidade do som, ou seja, quando ouvi o 'ploft' ela já poderia, facilmente, ter engolido uns dez cacos de vidro. Fiquei olhando para ver se o estorvo começaria a por sangue pela boca, ou se eu precisaria soltá-la na rodovia para solucionar o problema. Spoiler alert: ela agora dorme tranquila, e peidando, enquanto eu sofro as consequências das guelices que ela me apronta.
Isolei a área, e pus-me a recolher o lixo em que se transformou meu prato. Recolhidos os cacos – da travessa, não os meus – joguei sabão no chão, enquanto terminava de lavar a louça, para terminar de limpar a sujeira de Diana. Terminei a limpeza com meu cóccix e minhas costas. Caí no chão, como caí na real de que me apaixonei pelo contatinho, que não está nem aí pra mim – diferentemente dos tantos outros caras que ficam no meu pé, me achando doce como sorvete, sem perceber minha frieza.
Gritei de dor. Fiquei no chão pensando que iria morrer ali, sozinha. Que depois de alguns dias, com fome, meus cachorros quebrariam as portas de vidro e viriam se alimentar do meu corpo putrefato, ainda não descoberto pelos vizinhos. Gemi enquanto tentava me virar, e perceber se conseguia mexer minhar pernas. Sério: sou super resistente a dor – tenho oito tatuagens; já tive piercing em vários locais 'doloridos'; tive apendicite e fui trabalhar no dia, e caminhei meia hora de um trabalho a outro, antes de ir ao hospital e ter o diagnóstico. Tive a orelha quase arrancada por um cachorro vadio – mas essa dor era excruciante.
Consegui colocar-me de pé, e resolvi que aquela queda não me jogaria novamente no chão: e é verdade, dele ninguém passa. Escrevo isso sentada sobre uma bolsa de gelo, com os fundos bizuntados de gel hidro-alcolico, e com o sorriso no rosto de quem teima em acreditar que no fim tudo dá certo; e se sobrevivi a queda do paraíso, não é bater num chão de granito que vai me tirar de circulação.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Estrada

Sou uma criança, não entendo nada – Erasmo Carlos


Antigamente quando eu me excedia
Ou fazia alguma coisa errada
Naturalmente minha mãe dizia:
"Ele é uma criança, não entende nada"...
Por dentro eu ri
Satisfeito e mudo
Eu era um homem
E entendia tudo…
Hoje só com meus problemas
Rezo muito, mas eu não me iludo
Sempre me dizem quando fico sério:
"Ele é um homem e entende tudo"…
Por dentro com
A alma atarantada
Sou uma criança
Não entendo nada...”

Depois das palavras do Tremendão, acho que nenhuma crônica é necessária, né? Somos Benjamim Button na vida, tirando a forma física que decai a cada dia, a única certeza que tenho é que cada dia é mais incerto.
Há 11 anos eu acabara de terminar o ensino superior, na área que eu tanto amava. Havia encontrado o Sr. Perfeito com quem eu namorava – e com quem dividi os últimos 11 anos da minha vida. Tudo parecia definido, era só seguir o curso natural da vida. Eu segui.
E os planos às vezes davam meio errado, mas lombadas fazem parte da estrada, certo? Eu sabia onde estava indo, portanto seguia meu caminho de peito aberto. 
Até que de repente uma adutora rompeu, e o chão cedeu sob meus pés. Vi-me novamente sem saber para onde ir. Aos trinta e quatro anos tenho tão poucas certezas: sei que minha mãe é o grande amor da minha vida; que amo doguchos; que tenho os melhores amigos e só. Não faço a mínima ideia de para onde estou indo. De quem sou; se estou pronta… na verdade sei que não estou pronta pra nada.
Não sei se canto ou se aprendo a pilotar uma moto e sumo de minha própria vida. Quero fugir, e nem sei para onde e por tanto não saber – deito e durmo. Aguardo um sinal cósmico que me diga que estrada percorrer agora que não preciso mais percorrer aquela que precisava ser caminhada. Segui por onde esperavam e fracassei com “F” maiúsculo. Deixarei algo para trás, é impossível trilhar mais de um caminho ao mesmo tempo, já dizia Robert Frost, autor de um dos meus poemas favoritos. E por ter tantas possibilidades sento-me impacientemente na pedra em meu caminho.
Nunca senti-me tão livre, jamais senti-me tão perdida: de mim, no mundo. Deito-me e espero a tempestade passar, com fé que as nuvens desabarão e com sua queda abrirão meus olhos… mas sei que seguirei tateando por aí – cega, perdida, estúpida… errando, errante.





quarta-feira, 7 de março de 2018

Ticket to ride

   O amor moderno... será que podemos mesmo chamá-lo assim? Não sou da época em que o amor rimava com dor, com ardor, e até com pavor. O amor romântico de Lord Byron, do absinto e da tuberculose, das noites insones, das musas inalcançáveis e do desejo platônico.
Assumo que já curti muito esse romantismo dark, até conhecer o amor retribuído – ou quase. É muito mais legal viver uma história que idealizá-la. Prendi-me a isso, e cabei por amar quem me amava, focando nas virtudes e me esquecendo dos vícios – vendo o mundo através de olhos de vidro que destorciam a dor para amor.  E até que fui feliz – ou quase.
Depois de virtuosos amores viciantes cai na sarjeta do amor romântico de novo: fui jogada inclusive. Deixei-me beijar por cães vadios de duas e quatro patas enquanto jazia no chão. Entornei incontáveis garrafas de vinho, até cair sonolenta em minha cozinha; desejava que a vida de meu corpo se esvaísse, como o amor saiu da minha vida, e como a fumaça do cigarro que até aqui eu não fumava.
Mas essa fase do romantismo já passou de novo, e resolvi experimentar. E aqui entra o tal do amor moderno. Tão rápido quanto o fast food que comemos após sair do cinema, dentro do shopping, e com o  mesmo valor nutricional. Da ultima vez que lanchei na rede do palhaço fiquei toda empelotada de alergia. Comi o lanche em vinte minutos, me cocei a noite toda. Assim como o amor moderno.
Esse invenção não sei de quem é assim: você olha o menu, escolhe o que lhe parece agradável, experimenta. Tem um tal de “menu degustação” também, pequenas quantidades de muitas variedades. De toda forma, é tudo rápido. O menu degustação é tão pouco que não dá nem para causar intoxicação. Já o lanche do fast food... quanto mais melhor. Você se esbalda, acha ótimo. Mas se perder o timing de comer e esfriar fica péssimo. Também é péssimo para a saúde. E no meu caso dá coceira também.
Se não gostou da analogia do fast food pense num parque de diversões, daqueles meio velhos que passam temporadas na sua cidade, que é uma cidade pequena e quase nunca tem atrações culturais, se é que podemos chamar assim. Você bate os olhos naquela montanha russa de madeira, crocante. Parece que se desfará em farpas e cupins a qualquer momento, mas você está há tanto tempo sem fazer nada que julga que não tem nada a perder, e resolve pagar para ver.
Sabe que será uma jornada curta, com altos e baixos, com grandes chances de dar errado:  o equipamento de segurança, se existir, pode não ser eficaz; você pode ficar com dor na coluna de tanto se bater naquele carrinho enferrujado; pode até pegar tétano; o carrinho pode parar e você ficar lá em cima por mais tempo que planejara, tomando chuva e passando frio – com a sensação de que aquilo não foi idéia sua, mas foi. Você pode vomitar, durante ou depois da jornada.
É claro que existem amores modernos que valem o risco, e que são super divertidos, você solta as mão e grita com os olhos abertos enquanto seu corpo parece estar em queda livre – mas são curtos. Você anda na montanha russa diversas vezes, sabe que sempre acaba, mas quer mais – até que o dia em que parque vai embora, e você não vai acompanhá-lo como José Arcádio acompanha os ciganos. Acabou.
E termina assim – como começou: enquanto você observa o amontoado de farpas e cupins em que se transformou sua vida, e pensa que deveria ter ficado em casa, com um livro ou a TV. 

terça-feira, 6 de março de 2018

Tatuagem sob a pele

A vida já havia marcado seu corpo de várias formas.

Era tão jovem, mas como quase toda fêmea, de quase toda espécie, já havia sido alvo de usos e abusos – era vista como mero objeto. Além dos toques lascivos em seu pequeno corpo desejado e apalpado, ela carregava hematomas agora invisíveis em sua superfície, porém eternos em sua mente. Marcas de um amor paternal aquebrantado, descontrolado, porém verdadeiro.

Ela não se importava com aquelas marcas, as carregava como cicatrizes de uma guerra contínua, a qual ela sobrevivera, até então, à todas as batalhas. Todavia, não se orgulhava delas, sabia que elas eram muito mais profundas que sua derme e que sua consciência, e que um dia, essas cicatrizes cobrariam com juros o preço por terem sido negligenciadas. Eram histórias para contar: após abertas, as feridas – tanto as do corpo quanto as da alma – devem ser lambidas sem descanso, devem tornar-se febre, dor, e um dia começarem fechar. Até que se transformem  apenas na história – em cicatrizes claras ou sessões de terapia.

Cansada das marcas que a vida lhe dava, resolveu marcar-se também: com cores, traços, desenhos e a história que resolvia escrever. Tatuou seu corpo com dor, e com cor: a dor gostosa que antecede o gozo e que prova que a respiração ainda não parou; as cores que ela escolhia para pintar a própria vida – mostrando que podiam fazê-la sofrer, mas não podiam roubar-lhe o caminho.

Tomou gosto por suas escolhas, e cada marca era um sinal para o mundo de que ela era sobrevivente e que não deixaria de ser. Então o amor entrou em sua vida, e ela esqueceu os horrores da guerra: apegou-se a ilusão de que sempre haveria um colo, um abraço, uma mão para ajudá-la a se erguer. Os anos se passavam, as dores da alma causadas por seu sexo e por sua meninice deixaram de existir. Tornou-se confiante, e as marcas em seu corpo agora eram de mordidas e brincadeiras extasiantes.

Mas não há trégua que dure para sempre, e as cicatrizes que carregava dentro de si começaram a latejar a medida que o amor começou a abandoná-la, e com o piscar dos olhos a vida iludida já não existia mais: não havia mais colo, nem abraço, e a mão que deveria erguê-la afrouxou-se como um elástico velho. Foi deixada ali, por ele que sempre criticara as marcas em seu corpo, justamente aquelas das quais ela mais se orgulhava, aquelas que gritavam para o mundo: sou minha, e vou seguir sendo!

Sem saber, talvez até sem querer, ele tatuou na vida dela traços tão tortos e profundos que pintavam de preto até mesmo seus ossos. Seus olhos eram a dor estampada de agulhas desgastadas e enferrujadas. Toda sua pele era negror, tatuagens mal feitas, linhas de desamor.

Ela tratou de tratá-las para que parassem de doer: lambeu suas feridas abertas como um cão que gane baixinho após ser surrado; a febre tomou conta de cada célula do seu corpo, e a desorientou. Mesmo desorientada e quebrada seguiu sem se demorar no chão. Cada queda era um recomeço, apenas mais uma escoriação após ter sido cruelmente empurrada do quinto andar.

Agora segue cambaleante, com feridas semi fechadas e um coração partido – aberto para sentir-se vivo. Carrega esse coração na pele, para gritar ao mundo que mais uma vez ela sobreviveu, e que a dor que a marca hoje, amanhã será apenas mais um capítulo da história que escolheu escrever.

cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu ...