domingo, 18 de março de 2018

Queda


Hoje eu tive medo de morrer sozinha.
Depois de meses de choro, chorei hoje de alegria. Vi minha essência retornar para mim enquanto lavava a louça e ouvia meu cantor favorito: cantei aos berros e dancei sozinha no meio da cozinha. Senti que poderia ser feliz, genuinamente e comigo. Permiti-me ir lá fora, olhar para cima e deixar o sol me esquentar a face e me encher de vitamina D.
Limpei, lavei, organizei – deixei que o exorcismo fosse completo. Cozinhei tudo o que havia na geladeira – berinjela, pimentões, baroa, quinoa, beterraba… parecia um recomeço perfeito. Senti prazer ao olhar para área externa e vê-la limpa, apesar de destruída pelos meus cães.
Estava em êxtase divino, em outra dimensão – sabe aquela felicidade que a gente tem quando alcança um objetivo; quando se vê diante de uma paisagem enebriante, ou quando o filho da puta do contatinho que você é super afim te manda uma mensagem ou responde a sua de forma fofa - não com aquela secura que você precisa passar até um creme hidratante para ler? Pois era essa a sensação. Passei do divino ao humano, que precisa fazer aquele xixi básico, de um segundo para o outro.
Pois eu acabara de tirar uma travessa de caponata de berinjela do forno, que serviria de recheio para uma bandeja de cogumelos porttobello, comprada no dia anterior. Corri para aliviar minha bexiga que parecia apertada por um Exu, apesar do exorcismo.
Antes que pudesse terminar meu xixi, ouço um barulho na cozinha – ploft! Corro, me abotoando que qualquer jeito para saber se algo explodiu, se algum cachorro pulou janela adentro, ou se um Poltergeist resolvera me pregar uma peça: não, não. A cachorra devoradora de mangas ubá resolveu experimentar minha caponata de berinjela. Tudo bem, eu sei que meus cães não são confiáveis: mas eu não demoro nem dois minutos para fazer um xixi: no trabalho coloco minha marmita para aquecer por dois minutos e meio, saio, vou a casinha, e volto e o micro-ondas nem apitou ainda. Pensei que a demônia não descobriria a travessa fervilhante nesse tempo. Pois ela não só a descobriu como, sabe Allah como, puxou a travessa da bancada. Perdi toda a caponata e também a travessa, que se quebrou em centenas de pedaços – como meu coração ingenuo.
Além da raiva de ter perdido tempo picando cada ingrediente, revirando-os no forno durante mais de uma hora, sem sequer ter experimentado o resultado, fui tomada pela preocupação: a cachorra aspira comida com uma velocidade superior a velocidade do som, ou seja, quando ouvi o 'ploft' ela já poderia, facilmente, ter engolido uns dez cacos de vidro. Fiquei olhando para ver se o estorvo começaria a por sangue pela boca, ou se eu precisaria soltá-la na rodovia para solucionar o problema. Spoiler alert: ela agora dorme tranquila, e peidando, enquanto eu sofro as consequências das guelices que ela me apronta.
Isolei a área, e pus-me a recolher o lixo em que se transformou meu prato. Recolhidos os cacos – da travessa, não os meus – joguei sabão no chão, enquanto terminava de lavar a louça, para terminar de limpar a sujeira de Diana. Terminei a limpeza com meu cóccix e minhas costas. Caí no chão, como caí na real de que me apaixonei pelo contatinho, que não está nem aí pra mim – diferentemente dos tantos outros caras que ficam no meu pé, me achando doce como sorvete, sem perceber minha frieza.
Gritei de dor. Fiquei no chão pensando que iria morrer ali, sozinha. Que depois de alguns dias, com fome, meus cachorros quebrariam as portas de vidro e viriam se alimentar do meu corpo putrefato, ainda não descoberto pelos vizinhos. Gemi enquanto tentava me virar, e perceber se conseguia mexer minhar pernas. Sério: sou super resistente a dor – tenho oito tatuagens; já tive piercing em vários locais 'doloridos'; tive apendicite e fui trabalhar no dia, e caminhei meia hora de um trabalho a outro, antes de ir ao hospital e ter o diagnóstico. Tive a orelha quase arrancada por um cachorro vadio – mas essa dor era excruciante.
Consegui colocar-me de pé, e resolvi que aquela queda não me jogaria novamente no chão: e é verdade, dele ninguém passa. Escrevo isso sentada sobre uma bolsa de gelo, com os fundos bizuntados de gel hidro-alcolico, e com o sorriso no rosto de quem teima em acreditar que no fim tudo dá certo; e se sobrevivi a queda do paraíso, não é bater num chão de granito que vai me tirar de circulação.

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