quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Cuidando de mim

Na rua, você corre da chuva, tampando apenas os eletrônicos que você carrega na bolsa, torcendo para que o semáforo feche logo para os carros e você possa atravessar e se abrigar logo na próxima marquise. Seus cabelos e pés já estão tão molhados quanto a própria enxurrada, e você olha para o guarda-chuvas parado ao lado para encontrar um olhar grudado no seu.

Aquele olhar que te mede, e sorri dizendo: tá na cara que você é do tipo que deixa a sombrinha em casa até nos dias de chuva. Essa menina sempre foi desleixada. Aposto que essa maquiagem já estava mal feita mesmo antes da chuva lavá-la - talvez até esteja melhor agora.

Tarde demais para fingir que não viu. Enquanto você lembrava da vez que ela te dissera para emagrecer, porque moça gorda era muito feio e não arrumava namorado - você deixou seus olhos parados no dela; que pareceram lembrar no mesmo instante da resposta que você deu, aos nove anos de idade: feio é cuidar da vida alheia. 'Oi Dona Geralda tá, boa?'

Você diz e tenta correr entre os carro, mas ela te segura pelo braço, oferece o falso abrigo dos guarda-chuvas tão ineficientes para as chuvas de verão, e pede que lhe ajude a atravessar a avenida. Como boa simpatizante de Jesus, você bufa, pega a doninha pelo braço e se prepara.

Ela reza um terço de como os filhos estão bem, felizes, casados, com filhos. 'Fulano já é gerente na loja no sogro.' 'Ciclano teve uma filha de olhos azuis' e 'Beltrano, a esse é um menino de ouro, casou-se, mas trouxe a esposa, uma preguiçosa, para morar com a gente, tudo pra eu não ficar sozinha'. Pensando em perguntas rápidas sobre seus filhos, para que ela não se lembre de me interrogar sobre minha vida, vejo meu primeiro namorado atravessando a rua, jeans rasgado, violão nos ombros, uma namorada recém saída do ensino médio. Digo 'oi', me distraio de Dona Geralda que diz: 'mas cê sumiu da casa de sua mãe! Ficou rica, é? Esqueceu dela, sua desnaturada?' Sorrio e digo que visito meus pais sempre que posso, no intervalo do trabalho, que eles estão bem, eu também e que preciso ir.

Ela segura forte meu braço e diz. 'Mas seu marido não deve gostar que você fique tanto tempo fora de casa. Uai menina, cadê sua aliança? Não casou? Andar sem aliança dá azar... Ou a senhora anda mal intencionada?' Olho sem saber se corro, finjo demência, ou se concluo que meu casamento acabou porque meu marido andava sem aliança para poder me trair com um peso menor na consciência. Digo apenas que me separei. Aparentemente comovida, afinal a velha parece ter evoluído um pouco, ela fica em silêncio, aperta meus ombros e mira meus olhos. Fala que o divórcio é coisa do diabo, mas que com a presença e amor dos filhos a penitência é menos doída. Meu corpo me trai de algum modo - estou acostumada a conduta - e ela percebe que sou uma mulher de 35 anos, separada, sem filhos. Morando longe dos pais.

'Minha filha, cê precisa arrumar logo outro marido. Lembra de Sheila? Aquela gorda do cabelo ruim'. Tento sair em defesa de Sheila, mas Dona Geralda me nocauteia 'tem que ser igual ela, casou e separou. Casou de novo, o marido foi morto. Tá agora com um companheiro, chefe da boca. Tem 3 meninos, cada um mais lindo, cê tem que ver.' Penso em Sheila. Em suas dores e nos amores que a fizeram chegar ali.

Penso em mim, e percebo que sei pouco de Sheila, mas que assim como o dela, meu coração não é artesanato feito com garrafa pet, reciclada do aterro sanitário. Minha mãe não polvilhou meu bumbum com talco para eu deixa-lo preso ao lado de um homem qualquer. Fui criada pra me sentar no colo e ser chamada de bebê, e tratada como a rainha que sou. Olho Dona Geralda e pergunto se Sheila está feliz. Enquanto ela arruma o vestido amarrotado inesperadamente por minha pergunta a queima roupa - e genuína - consigo responder para mim mesma, após tantos meses de dúvida, sim eu sou feliz. Aproveito que estou livre, suas mãos antes em meus braços, ainda procuram a felicidade de Sheila perdida no vestido, e me afasto. Ela diz 'o importante é que ela tem alguém pra cuidar dela', concordo, enquanto deixo a chuva molhar meus cabelos, a camiseta mal escolhida e digo 'sim, temos a senhora. Ela tem o marido, e eu mesma decidi cuidar de mim.' Viro-me e deixo a chuva me abraçar.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Desistir

Em todas as minhas relações de troca, sejam elas de favores, afetos ou fluidos,  se eu preciso insistir, EU PREFIRO DESISTIR. Se não é leve, que o vento leve, e que vá em paz!

cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu ...