domingo, 21 de abril de 2019

Nada

Nada. Foi um feriado prolongado recheado de nadas. Nenhum encontro; nenhuma ida a qualquer bar; nenhuma viagem; nenhuma festa. Nenhuma gaveta arrumada; nada de colocar o quintal em ordem; ou terminar uma leitura. Não visitei nenhuma amiga. Nem fiz nenhum procedimento de beleza. Não tive nenhum momento de tristeza; nenhum arrependimento ou mágoa. Nada me feriu, ou foi ferido por mim. Nada planejei, e nada realizei. E a culpa que sempre senti por estar quieta? Nada. Foi lindo ouvir meu silêncio; acolher-me pela manhã e olhar-me no espelho sem pressa, sem julgamentos. Foi tranquilizador não mandar, nem receber nenhuma mensagem de 'oi, sumido'. E ficar feliz porque tudo que tinha que sumir... Se foi. Precisei encher-me de mim, e o fiz quase como uma kamikaze. Transbordei sem limites, até esvaziar-me por completo, e lá, no meio do nada, deixe-me estar. E estive livre, leve, viva. Sem demandas. Sem julgamentos, nem pressões. Apenas um mulher que se permitiu. A cada experiência me vivencio como jamais imaginei. Não é preciso o outro. Nascemos sós, e é bom ficar assim. Precisamos sim de outras pessoas, mas não o tempo todo. Podemos querer estar com outras pessoas, mas nossa felicidade não deve depender disso. Abra-se ao nada. E ele te mostrará tudo.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Quando eu parti

Eu jamais a compreendi. Apaixonei-me por aqueles grandes e profundos olhos castanhos, sem nunca ter conseguido mergulhar em tamanha imensidão. Pareciam-me tristonhos, e parecia-me que podia alegrá-los. E sei que o fiz. Por alguns anos.

Olhamos, os olhos dela e os meus, para o mesmo horizonte, e talvez tenhamos esquecido de demorar-nos nos olhos um do outro, e por isso não tenhamos percebido o abismo que nos separava. Eu tinha meus pés cravados no chão, queria caminhar ao seu lado – e a ela só interessava voar. Queria puxar-me pelas mãos, conhecer as estrelas; tocá-las, sentir seus corpos fumegantes.

Queria arrastar-me consigo, e também todos os seus amigos. Preocupava-se e sofria com suas dores. Chorava suas lágrimas como se a dor daqueles que amava tivesse nascido em seu próprio peito. E como sempre amou demais, sempre sofreu demais.

Ela amava o doce de amendoim que eu comprava para ela; o porta moedas que alguém encontrou em um porão esquecido e resolveu presenteá-la; a música nova  que tocava na rádio, que eu nunca ouvira e que ela cantava a plenos pulmões, logo após o primeiro acorde. Amava o morador de rua e o batuque que ele fazia no ponto enquanto ela esperava o ônibus. Amava séries bobas de televisão e principalmente: as causas impossíveis. Amava tanto e todos que me impressionava como depois de tantos anos ela ainda conseguia me amar, quanto mais amava, mais parecia multiplicar.

Aos poucos foi dizendo menos o quanto me amava, deixando menos bilhetes pela casa, mas eu a surpreendia frequentemente com aqueles imensos olhos pousados sobre mim, preguiçosos, brilhantes, e sorridentes.

Eu deveria ter percebido que o fogo de seus cabelos era o fogo que ela trazia em sua vontade. Ela era incontrolável. Fazia o que queria, quando queria e como queria. Falava palavrões; mudava o cabelo num rompante, num dia que tinha ido ao centro da cidade apenas para uma consulta médica; falava que queria se tatuar novamente, e no dia seguinte já tinha no corpo um novo colorido.

Ela era brava como todo vulcão em atividade tem que ser, e ela corria de um lado para outro, em constante atividade, cada dia um algo novo, sua inquietude me inquietava. E com o tempo esse desassossego, tornou-se incômodo. Não é fácil morar ao lado de um monte quente, com possibilidade constante de explosão, calor, lava e até destruição.

Com nossas personalidades distintas, e sua infinita paixão, ela tentou se apagar. Queria caber onde eu pudesse estar. E se perdeu de si, e também de mim. A erupção tornou-se brasa fraca, e eu a via se diminuir cada vez mais para reacender a chama de um amor que não mais existia.

Meu amor já tinha outra morada. Sem dar explicações, eu parti. Sem olhar para trás, deixei-a – não soube fazer de outra forma. Já havia me queimado suficientemente, já carregava em mim as marcas, boas e ruins, que ela houvera causado. Sei que a marquei também. Espero que ela perceba que meu último ato, de aparente covardia e crueldade era necessário.

Espero que ela enxergue que meu desamor final foi o resultado de um amor que não cabia em mim, em nós: eu tentei, ela tentou, seguimos forçando caminhos paralelos, sem saber que nos cruzamos num dia, para depois nos afastarmos sem retorno. Não sei medir o quanto dela carrego em mim, e se gosto desse fardo, de ter partes de mim moldadas em suas forjas.

Espero que ela já não me odeie tanto, e que consiga perdoar-me por ter sido eu mesmo – afinal, estávamos lá, nós dois, o tempo todo e não nos vimos por querer demais. Fomos partes opostas, de um quebra-cabeça que não nos completava, quebrou-nos, e assim, um sem   o outro, partimos.

 

Dividamos

Categorizo-me como uma mulher heterossexual curiosa. Já beijei algumas meninas, mas a verdade é que a esperança de achar uma que me faça mudar de time me cega para o fato de que eu gosto mesmo é de me enroscar com 'os boy'. Apesar de não me sentir fisicamente atraída pelas 'mina' é com elas que compartilho as melhores experiências da minha vida: risadas, noitadas, porres, conversas sem censura. É com elas que compartilho o amor em sua forma mais bruta, e mais linda: a amizade.

Assim, sou uma heterossexual curiosa, com profundas tendências homoafetivas, ligadas a sororidade, empatia, admiração, e mais uma tonelada de atributos. Ainda com toda essa bagagem, me pego às vezes ouvindo música pop e sonhando com um boy pra chamar de meu. Critico-me até a pinta que tenho no segundo dedo do pé direito por isso, mas o que posso fazer, se fui criada e instruída para querer um benzinho para experimentar a vida ao meu lado; se meu corpo me manda sinais frequentes de que apenas a endorfina proveniente da alegria que minhas irmãs me trazem não será suficiente para suprir todas as minhas necessidades físicas?

Fiquei pensando no tal relacionamento bonitinho, e pensei: vai rolar não. Na cidade onde eu moro deve ter umas cinco mulheres, em sua maioria lindas, inteligentes, independentes e destemidas para cada homem. E eu podia parar nesse argumento. Acabou o texto.

Mas vou continuar. Desses homens, que já tem um séquito de cinco mulheres, do caralho, pra escolher, tem uns que a gente não pega nem a base de muita droga pesada: seja porque a gente já pegou, e não quer repetir a figurinha no álbum (tem uns que a gente quer fazer um álbum só dele, de tão 'credo, que delícia' que é); seja porque nossa amiga já pegou e levantou a ficha técnica do moço; seja porque ele votou 'naquilo que o gato faz e enterra' e repete todo um discurso de ódio que a gente repudia mesmo tentando ouvir com orelhinhas de amor. Enfim, tem os manos impegáveis. E tem também os impecáveis, que a mulherada toda quer. Inclusive a gente. Eles são tudões - inteligentes (não apenas intelectualmente, e principalmente emocionalmente); abertos ao novo, ao diálogo. Beijam bem, transam bem. Ligam no dia seguinte, respondem às nossas mensagens, mandam mensagem para falar de nada; acreditam no que a gente fala, não são prepotentes e portanto não se julgam mais informados sobre nós que nós mesmas: aceitam quando dizemos que estamos felizes, calmas e que não queremos beber ou transar ou sair. Ah, eles são sinceros e diretos, sem ser uns ogros.

Então é isso, um tanto de mina legal, pra uns quatro ou nove tudões. Mesmo sendo formada em letras, fiz os cálculos aqui, e vi que até com a margem de erro do Ibope, essa conta não fecha. Cada um vai ter que pegar pelo menos umas 1.349.

É isso amigas, vamos ter que começar a dividir os bofes. Sei que nossas mães nos ensinaram que deveríamos achar o amor de nossas vidas, e que nós seríamos o amor da vida deles também, e como um casal de pinguins, desfrutaríamos até o frio polar lado a lado, e felizes. De minha parte sou naturalmente monogâmica, nunca traí um ficantezinho sequer. Se tô sendo tratada com respeito e carinho; se não tentam me botar cabresto; me sentam no colo como a menina levada que sou, eu fico sossegada. Nem preciso ver o amado toda semana. Não preciso conversar todo dia. Tô de boa. Mas esse trem de monogamia é para almas velhas feito eu. Os tempos são outros, de poucas opções interessantes, de sustentabilidade, de Uber, de Airbnb, bicicletas e patinetes elétricos compartilhados, é época de parar de acumular e investir em experiências. A gente resiste, afinal toda novidade traz desconforto no início - e às vezes a adaptação se mostra infrutífera.

Confesso que para alguém que teve um relacionamento de cinco anos, e outro de onze - nesse eu dividi o bofe, mas sem saber - eu acho que estou até bem aberta. Logo que me vi fora de um relacionamento formal eu tive uma paixonite crônica, uma delícia. E ele era desses tudões, que a gente tem que dividir. Eu o dividia com outra mocinha, e não tinha problema nenhum com isso. Mas tive uma recaída pelo tradicionalismo - troquei tudão compartilhado por um amendoim exclusivo, me dei mal. Ainda não tinha me visto completa e sentia que precisava de uma parte que faltava em mim. É claro que o amendoim, teve uma colaboração em meu crescimento pessoal, trazendo-me um passo, ou seriam dois centímetros, mais perto desse momento - quando eu consigo enxergar um relacionamento aberto como possibilidade.

A grande sacada é que vejo hoje o respeito e o diálogo, características sempre essenciais em minhas relações, com olhos mais maduros. Vejo a realidade das relações modernas com mais clareza. Somos seres completos, universos que se expandem e se tocam - é com esses universos que quero dividir meu tempo e espaço, não me importando se tenho que dividi-los com outros universos não menos interessantes que eu. E mais uma vez eu digo, o mundo está cheio de mulheres fantásticas. Enquanto encerro esse texto, uma vozinha, agora quase um sussurro, o som de uma idosa que ainda sonha com o amor diz... Mas e se você achar um tudão tão preguiçoso para a conquista quanto você? E eu digo... Só vem.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Gentileza sobre rodas

No trânsito, pela manhã, dei a seta, chequei o retrovisor (raro momento em que me permito olhar pra trás) e mudei de faixa. Murphy atuou rapidamente - seta, retrovisor, retorno a faixa de origem. O motociclista, que vinha pelo corredor, e que estava em plena segurança, me certifiquei disso - gentilmente sacudiu os braços, de forma vigorosa, para me alertar - não resta dúvidas - que de acordo com o novo código nacional de trânsito veículos automotores de quatro rodas não podem mais mudar de faixa. Mandei uma chuva de beijos pra ele, e desejei que esse ser de luz tivesse um dia abençoado. Espero que ele tenha visto pelo 'espelhinho' enquanto se afastava apressado, zigzagueando entre os outros veículos. (Ps. Sem sarcasmo. True story.)

cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu ...