segunda-feira, 15 de abril de 2019

Quando eu parti

Eu jamais a compreendi. Apaixonei-me por aqueles grandes e profundos olhos castanhos, sem nunca ter conseguido mergulhar em tamanha imensidão. Pareciam-me tristonhos, e parecia-me que podia alegrá-los. E sei que o fiz. Por alguns anos.

Olhamos, os olhos dela e os meus, para o mesmo horizonte, e talvez tenhamos esquecido de demorar-nos nos olhos um do outro, e por isso não tenhamos percebido o abismo que nos separava. Eu tinha meus pés cravados no chão, queria caminhar ao seu lado – e a ela só interessava voar. Queria puxar-me pelas mãos, conhecer as estrelas; tocá-las, sentir seus corpos fumegantes.

Queria arrastar-me consigo, e também todos os seus amigos. Preocupava-se e sofria com suas dores. Chorava suas lágrimas como se a dor daqueles que amava tivesse nascido em seu próprio peito. E como sempre amou demais, sempre sofreu demais.

Ela amava o doce de amendoim que eu comprava para ela; o porta moedas que alguém encontrou em um porão esquecido e resolveu presenteá-la; a música nova  que tocava na rádio, que eu nunca ouvira e que ela cantava a plenos pulmões, logo após o primeiro acorde. Amava o morador de rua e o batuque que ele fazia no ponto enquanto ela esperava o ônibus. Amava séries bobas de televisão e principalmente: as causas impossíveis. Amava tanto e todos que me impressionava como depois de tantos anos ela ainda conseguia me amar, quanto mais amava, mais parecia multiplicar.

Aos poucos foi dizendo menos o quanto me amava, deixando menos bilhetes pela casa, mas eu a surpreendia frequentemente com aqueles imensos olhos pousados sobre mim, preguiçosos, brilhantes, e sorridentes.

Eu deveria ter percebido que o fogo de seus cabelos era o fogo que ela trazia em sua vontade. Ela era incontrolável. Fazia o que queria, quando queria e como queria. Falava palavrões; mudava o cabelo num rompante, num dia que tinha ido ao centro da cidade apenas para uma consulta médica; falava que queria se tatuar novamente, e no dia seguinte já tinha no corpo um novo colorido.

Ela era brava como todo vulcão em atividade tem que ser, e ela corria de um lado para outro, em constante atividade, cada dia um algo novo, sua inquietude me inquietava. E com o tempo esse desassossego, tornou-se incômodo. Não é fácil morar ao lado de um monte quente, com possibilidade constante de explosão, calor, lava e até destruição.

Com nossas personalidades distintas, e sua infinita paixão, ela tentou se apagar. Queria caber onde eu pudesse estar. E se perdeu de si, e também de mim. A erupção tornou-se brasa fraca, e eu a via se diminuir cada vez mais para reacender a chama de um amor que não mais existia.

Meu amor já tinha outra morada. Sem dar explicações, eu parti. Sem olhar para trás, deixei-a – não soube fazer de outra forma. Já havia me queimado suficientemente, já carregava em mim as marcas, boas e ruins, que ela houvera causado. Sei que a marquei também. Espero que ela perceba que meu último ato, de aparente covardia e crueldade era necessário.

Espero que ela enxergue que meu desamor final foi o resultado de um amor que não cabia em mim, em nós: eu tentei, ela tentou, seguimos forçando caminhos paralelos, sem saber que nos cruzamos num dia, para depois nos afastarmos sem retorno. Não sei medir o quanto dela carrego em mim, e se gosto desse fardo, de ter partes de mim moldadas em suas forjas.

Espero que ela já não me odeie tanto, e que consiga perdoar-me por ter sido eu mesmo – afinal, estávamos lá, nós dois, o tempo todo e não nos vimos por querer demais. Fomos partes opostas, de um quebra-cabeça que não nos completava, quebrou-nos, e assim, um sem   o outro, partimos.

 

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