quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O fim dos frutos

 

Hoje eu colhi as últimas mexericas.

Agradecia a árvore enquanto lembrava que meses antes eu havia desejado silenciosamente a possibilidade de aproveitar-me, pelo menos um pouco, de seus frutos, antes de partir. Lembrei-me de quase ter matado sua vizinha, um pé de acerola, por não regá-las, por não ver na vida razão de ser – mas isso foi em outra vida, uma que acabou.



Enquanto colhia os frutos, e admirava o chão coberto de frutos destruídos por meus cães, e pelos papagaios que me vem visitar e latir, quando meus cães se esticam por tempo demais embaixo do sol, pensava em quantos frutos tinham sido colhidos, em todas as pessoas que tinham se aproveitado comigo das  pequenas e mexeriqueiras criações daquela árvore. Quantas sacolas cheias de tangerina levei em meu carro; quantas horas me esticando para ‘panhá-las’ e dividi-las com os meus; quantas sementes transportadas, algumas plantadas, outras comidas por pássaros e pelo Doritos, outras simplesmente descartadas, sem saber dos pomares que carregavam dentro de si, de como as pessoas iriam adorar seu frutos, e falar deles em almoços de domingo, nas redes sociais, ou em café da tarde entre mãe e filha.

Uma pontada de tristeza passou feito nuvem leve por meus olhos, sem saber se novamente poderei desfrutar de tão simples, pequenos e doces frutos. Olhando para cima, para as derradeiras e murchas bergamotas ainda coladas no pé, vi o céu azul, senti o vento de agosto que soprava a terra seca em meus pés, e vislumbrei, no ponto onde a mexeriqueira e a amoreira se encontravam, os primeiros pontinhos pré-enegrecidos do pé de amora.

Aquele pé de amora... que tanto insistiram para que eu cortasse: não cortei. E hoje ele veio me lembrar – há sempre uma estação, uma estrada, para recomeçar, para nos adoçar, para nos dar esperança. E enquanto essa terra  aqui, dura e pouco fértil for meu lar, eu a abraçarei com carinho: sendo grata por tudo que nesse chão brotar e frutificar – e mesmo quando não. Farei daqui meu reino, um pomar de sonhos e alegrias, que como a temporada de mexericas encontrará seu fim; e que como a temporada de amoras, se iniciará – nessa terra, ou em outro lugar.

 


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Tempo... Sempre o tempo.

 O tempo do outro não nos pertence, assim não escolhemos como devem usá-lo. Mas se privilegiados, podemos escolher como viver o nosso. Sim, viver. Porque tempo é a vida que escorre entre nossos dedos enquanto seguramos o celular, a mirar sua tela, esperando um telefonema, ou uma resposta. Vida que não volta nunca mais. Tempo é a brisa que faz girar as engrenagens do relógio.

Enquanto a resposta a algo que julgamos tão relevante que jogamos para o outro não vem, nós não perdemos tempo. Ele corre, da mesma forma que correria se ao invés da espera resolvêssemos viver, e ter aquela conversa com a amiga do ginásio, reler aquele livro que tem cheiro de saudade, na soneca cheia de sonhos macios, ou num banho pra lavar a alma e o cabelo antes da meia noite. 

Não há nada de errado. Ela não precisa te querer no seu tempo - mas é claro que dói saber que enquanto você espera, olhando o tempo passar - sem passar a roupa, nem o rodo, nem o medo passa - ela não te encaixa no tempo de duas palavras. Num refrão.

Dói reagir e entristecer-se s por que pra ela você não é nem o segundo no quinquagésimo nono segundo da hora final de uma segunda-feira, em que você esperou todo dia, sem segundas intenções, só por se importar e querer notícias.

Ela não te pediu que esperasse - mas esperastes; por esperança e expectativa, enquanto os minutos agonizavam.

Talvez ela tenha dito que ligaria - mas quando? Até quando? 

E você espera até não querer mais, literalmente. Até que a resposta tenha se tornado tão irrelevante quanto você, e saber como foi o dia dela já seja um capítulo do passado. E se ela vier, a resposta, será como o tempo que passou enquanto você esperava - vazio, intocável.

Também esperei. Mas tornei-me boa em deixar tudo pra trás: o tempo, a mala, a estrada - ainda que me doa. Sei acertar meu ponteiro, aceitar meu lugar no calendário, na linha cronológica, na breve história de um suspiro.

Assim como o tempo, eu não cesso, eu não sou, eu me dobro, eu vôo. E aprendo:

Não nos pertence o tempo do outro, nem ao outro pertencemos, nem nosso tempo - ao menos que assim desejemos desperdicar-nos - então, tomo o tempo que me resta, em longos goles sedentos, dias e momentos só meus.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Mestres

Tudo é lição, aprendizado. Todos são mestres.

A chegar ao mundo, o ar nos ensina a respirar. Ninguém além desse gigante sem forma, nos penetrará as narinas, e os pulmões – essa lição nos manterá vivos, e nos fará chorar. Respiração e lágrimas. Primeiros passos de uma estrada que percorreremos até não conseguirmos mais preencher nossos pulmões em movimentos cíclicos e molhar o caminho com a água salgada que faz tudo brotar.

Aprenderemos a nos encostar sedentos no seio de nossa mãe, e nos alimentar do líquido quente que nos ensinará o amor, a segurança, o abraço – pelo menos a maioria de nós aprenderá assim, ricos e pobres, em quase todo o planeta. Mas se o acalanto de se achar ao peito de uma mãe não vier, o amor, cedo ou tarde se aproximará.

Aprenderemos entre quedas a caminhar; entre caretas e recusas quais os alimentos gostamos, e que devemos ou não comer. Aprenderemos sobre como o fogo aquece, mas também destrói; como a faca corta, e que alguns ‘amigos’ nos empurrarão do escorregador.

A vida é aprendizado, e cada professor é mestre. Aprenderemos a calma, seja pela voz macia de mãe, ou tia, ou pela dor de esperar por um sonho que, por mais que persigamos, parece estar sempre atrasado. Aprenderemos nossas habilidades, seja pelo prazer do ofício, ou pela urgência de sobreviver.

E aprenderemos que aquilo que não nos mata, de uma forma ou outra, acaba por nos fortalecer – por vezes descobrimos que mesmo despedaçados conseguimos sobreviver, rir, e sonhar de  novo. Há quem nos ensine pelo exemplo, velas na escuridão que nos doam sua luz, sabendo  que não se tornam menores, mais cálidas, gélidas por nos iluminar. A quem tente nos apagar pelo simples prazer de ver-nos extinguir a luz e o calor – e sem saber ensinam-nos a fazer luz onde nem  física, nem intuição poderiam prever, ou ter receita.

A quem nos tome pela mão, e nos guie, ou apenas nos acompanhe em nossos caminhos. A quem nos roube o alforje, as vestes, e até o alimento. Nos fustigam a carne, e nos deixam sob céu ensolarado, esperando que pereçamos. Se não nos matam, criamos raízes, e brotamos de novo.

São esses os mestres do fogo. Destroem-nos, tentam destruir-nos, com suas cegas labaredas, para se irritarem ao ver-nos brotar novamente na chuva seguinte. Parecem ensinar, e pouco aprender. Não percebem quem nem sempre hão de vencer. Seguem tentando, queimando-nos, seguimos brotando.

Ar, água, terra e fogo. Sangue, lágrimas e recomeços, sonhos que se despedaçam dando lugar a outros. E a gente vai aprendendo, sem se prender. Talvez a aula não acabe, e não possamos descansar até aprender algo que sequer sabemos existir: fé, afeto, sabedoria, calma, raiva, pressa ou letargia – tudo deve ser esmiuçado, e tatuado em nosso corpo, arquivado em nossa memória – até o dia que o ar não nos preencherá os pulmões, estarão cheios da vida que aprendemos, rio corrente que chegou ao mar.

 

 


cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu ...