quinta-feira, 30 de março de 2023

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Você me queria perfeita, impecável;
Eu esperava que você fosse bom.
Fracassamos.

quarto

Sobre nossas cabeças há um teto, que nos separa das estrelas. De lá, mortas ou não elas podem nos espiar. 

Esse teto nos protege, nos acolhe. 

Um lar para voltar quando as jornadas e buscas derem trégua; um lar para se despir das armaduras; um lar para plantar uma semente, e enquanto as primaveras passam, vê-la crescer e se tornar sombra. 

Meu lar é onde meu coração consegue repousar, e é aqui, nessa casinha velha, barulhenta, e precisando de reparos que repousamos. A despeito das rachaduras e goteiras, eu sorrio – e vejo diariamente brotarem novas memórias de alegria – as quais, daqui um tempo, chamarei carinhosamente de saudade. 

Há muito escrito nessas paredes, sob cada camada de tinta e pó.  

Há assombrações que só eu vejo – elas gritam, de um passado, mas eu ainda sinto, escuto, e me assusto com os ecos vindos de lá – mas perdoo: há espaço para alguns fantasmas aqui, entre os livros, atrás de algumas portas, em meu peito. 

Minha casa tem um quarto desocupado – o qual tento esvaziar, tirar o entulho, mudar a cor da parede, mexer nos móveis. Ele, que é parte da minha casa, às vezes faz morada em meu peito, e o pesa – toneladas de vazio e só. Desocupado sim, vazio... já não tenho tanta certeza. Por vezes parece que esse único quarto se torna maior que minha casa, que o país, ele ocupa cada canto do meu ser – e eu nem sei mais quem sou, pelo espaço desocupado que esse quarto ocupa. 

Mas ele é só um quarto – e um quarto não desfazerá a alegria das trincas do meu lar. Não preciso redecorar, esvaziar, reformar. Posso fechar a porta, trancá-la, e me esquecer que existe, que existiu. Não isso eu não posso. Ele continuará lá, e eu, o espiarei pela fechadura. 

Talvez cada dia eu tire uma pedra, uma guimba de cigarro, eu limpe uma única marca de pé da parede, eu arranque os pregos que pendem da parede, e tampe os furos. Se cada dia eu recolher uma lata de cerveja, ou catar os cacos de uma garrafa quebrada, talvez enfim, não sobre nada. E vazio meu quarto volte a me pertencer. 

E sem pressa de ocupa-lo com novas cores, flores ou odores, eu o deixarei ser. É melhor que esteja vazio para quando um novo sol brilhar, e lá dentro desse quarto, como fazemos em todos os outros cômodos da casa, pudermos brincar. 

onde deus

Quando deus saiu da minha vida, estávamos ambos feridos, quebrados. Ele bateu a porta violento, eu parei de bater palmas pra ele, e soube que ele jamais voltaria. Fiquei em silêncio enquanto o via sair raivoso, pela porta da frente, me ameaçando, me chamando de pecadora, dentre outras coisas.
Sabia que jamais poderia chamar de pai aquele que me punia, me agredia, que não conseguia me enxergar, ver minha dor, me salvar - ou pelo menos tentar. Ele bradou que eu não o respeitava - estava certo: eu apenas o temia.
A partir dali, eu me negava a adorar um deus que sabia que em algum canto, aqui e agora, uma criança estava dando seu último suspiro, entres soluços, pelas mãos sangrentas de alguém que se julgava semelhante aquele deus: prepotente, onipresente mas inoperante.
Compactuar com o aniquilamento da inocência, ou com injustiças era pra mim inaceitável - e ainda é. Não queria dividir minha dor, meus segredos, os últimos minutos antes de adormecer e meu despertar com aquele ser tão desprezível. Era melhor que fosse.
E foi assim que a fé que professei por uma vida se foi. E com ela, parte de mim.
Restou-me o silêncio, o vazio. A decepção de quem não sabe se foi enganada ou se enganou.

Então, num dia, quando já havia vida em mim - a presença divina preencheu minha tristeza solitária - enquanto eu chorava já prevendo a dor por vir, três passarinhos cantaram, e eu soube que não deveria me preocupar.

Entendi que a divindade morava no sutil, na linha que unia meus retalhos, aos retalhos de outro alguém, para  assim fazer brotar o novo. E mesmo depois de desalinhavados, e marcados pela agulha, ou esfarrapados por completo, em algum tempo, foi o divino que morou ali.

Percebi que a presença divina era o silêncio que nada dizia, ou fazia, mas que me ouvia, e me permitia ouvir meu pranto, que me deixava no chão, lambendo as minhas próprias feridas, ou fertilizando o solo para uma nova versão de mim.

 O sutil que morava numa ligação inesperada, no sorriso da desconhecida que se transformaria em colo, e proteção. 

A vida, teimosa em brotar, era o divino, a busca do equilíbrio, de rotas, de formas de sobreviver, ou de simplemente morrer em paz.

A porta então não se abriu, porque eu vi que a luz divina brilhava em mim, e jamais tinha me abandonado. Não era criação, caminho marcado, nem certo ou errado. O divino era criativo, fluido. 
E morava em mim. Eu soube que não poderia mais brigar com aquela força que era certamente mais forte que eu: abri meus braços e agradeci em prece - tudo ficaria bem.

terça-feira, 7 de março de 2023

morrer de amor

Achei que ia amar até morrer, quase morri de tanto amar.
E viva, levo um coração meio morto, doente. Sem vontade e desgostoso.
Como eu, perdeu a fé, a esperança. Apanhou tanto, que já nem lhe interessa bater.
Como eu, segue por mero vício na teimosia.
Maldito mulambo insistente.

cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu ...