quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Apenas as lições

Aquela queda da escada. Um choque elétrico. Se afastar do seu primeiro melhor amigo porque ele se mudou para uma nova casa. Mudar de escola. Ser chamada de gorda pelas outras crianças.  Quebrar os dois dentes da frente. Ser molestada por dois meninos na rua – sofrer vários outros ataques ou tentativas ao longo da vida. Perder um animal de estimação, para a rua ou para a morte, e depois muitos outros. Magoar alguém que a gente ama. Ser rejeitada pelos meninos da escola por não se encaixar no padrão. Enfrentar as punições físicas de uma família conservadora. Perder seus avós. A primeira morte de um amigo jovem. Cachumba. Infecção intestinal. Piercing na língua. Perder a virgindade. Terminar um relacionamento com o primeiro grande amor da sua vida. Bater o carro. Estar num carro enquanto esse atropela um cachorro. Apendicite. Colocar o dispositivo intra-uterino. Torcer o pé. Bater o dedinho na quina da mesa de centro. Descobrir traições. Terminar um casamento com aquele que você achou que passaria o seu ‘felizes para sempre’ ao seu lado. Cair de cóccix no chão. Apertar o dedo na porta do carro. Ser demitido. Brigar com um amigo e perdê-lo para sempre. Insolação. Ver uma amiga sofrendo por perder seu grande amor. Ter a orelha parcialmente arrancada por um de seus cachorros. Primeira vez que se doa sangue. Cirurgia de correção de desvio de septo nasal. Infecção de urina. Pisar em pecinhas de Leggo. Depressão.

Essas foram algumas das dores que passei na vida. Dizem que o próprio ato de nascer representa um trauma, que o sofrimento é indizível. Não sei, porque não me lembro: só sei que nasci porque estou aqui agora, na frente de um computador escrevendo sobre isso: ou seria eu apenas uma representação dentro da Matrix?

 Assim, não poderia descrever com exatidão nenhum desses sofrimentos, porque deixaram de doer. Alguns me marcaram com cicatrizes, que também não doem  mais –  e verdade seja dita, prefiro esquecê-los. Dizem que é um mecanismo de defesa de nossos cérebros. Li uma vez que se uma mulher conseguisse armazenar a intensidade da dor de um parto, ela jamais teria um segundo filho. Exagerada que sou, eu provavelmente nunca mais me aproximaria de objetos fálicos só para não correr o risco de engravidar.

Apesar de ter superado todas as dores eu prefiro mesmo esquecê-las, e guardar apenas as lições que elas me ensinaram, dentre elas que: piercing sempre dói -  o que não me impediu de continuar pendurando coisas em meu corpo. Que a culpa nunca é da vítima, afinal eu tinha apenas seis anos de idade quando fui abordada por dois garotos de doze, e uns quatro anos quando um homem pelo menos trinta anos mais velho tentou me puxar para um banheiro durante um velório. Que os cães sempre irão atrás da bolinha da eternidade antes da gente, que vai doer, mas que a falta que farão  um dia não pode nos privar de uma vida, deles, de alegria e amor. Aprendi que devo sempre passar o máximo de tempo possível com quem amo, afinal nunca sabemos quando eles se transformarão em algo tão abstrato quanto a saudade.

A dor nos avisa que há algo errado, e que precisamos tomar alguma atitude para nos proteger e o calo parar de doer. Não gostaria, jamais de ser portadora da Síndrome de Riley-Day, doença catalogada, que tem como sintomas incapacidade de sentir dor e produzir lágrimas. Imagine-me sem chorar? Eu não me veria em mim. Além disso, já li que portadores da doença vivem menos.

Apesar de me sentir a vontade com as dores que já senti, e ser grata a tudo que me ensinaram,  opto por não relembrá-las. Elas me transformaram na mulher que sou, me guiaram pela estrada que percorri – mas não devo me apegar a poeira do que ficou para trás, nem parar e olhar o caminho que não posso mudar.

Não passo horas olhando as fotos dos meus avós. Não levei meu apêndice infeccionado para casa após a cirurgia de remoção. Evito falar dos meus cachorros, e outros pets, que já voltaram a ser poeira de estrela. Queimei as cartas e fotos do meu primeiro grande amor. Tento não guardar mágoas de quem me fez sofrer – e me faz feliz conseguir, e torcer para que eles sejam felizes também. Assim, fujo do que me faz lembrar da agonia passada, pego o aprendizado – um presente, e sigo rumo a um futuro que estou prestes a construir. Sou o tipo de pessoa que, se fosse cristã, não pensaria na cruz que fez sofrer meu salvador, guardaria sua imagem ressuscitada, seus milagres de multiplicação e amor. Todos brindados com o melhor vinho servido na Bodas de Caná. Sigamos.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Foi você

'Gata, pare de romantizar seu sofrimento!' Eu digo para mim mesma enquanto me olho no espelho, de cima de um salto que me faz flertar com uma versão de mim mesma de quase 1,80m de altura; maquiagem ainda digna e um olhar claramente cansado.

Acho que tenho ouvido Beatles, Pearl Jam e outras canções que falam de amor em demasia. Essa lavagem cerebral sobre amores, dores, e reencontros. Essas melodias lindas, com letras que falam sobre paixões que dão errado, apenas para nos levar ao lugar certo, na hora certa, para que o acaso nos jogue nos braços do amor de nossas vidas me lobotomizaram.

Claro que além das canções de amor, existem filmes, livros, a vizinha que encontrou o amor aos 68 anos de idade, a prima de segundo grau da sua tia que achou o marido do ano num app de paquera.

E aí a gente vai acreditando que pode acreditar novamente no amor. E quando seu mini relacionamento chega ao fim - sim, ele era baixinho e vocês nem chegaram a pôr um nome nesse movimento de pegação - você acha que essa dor que você carrega no peito é por causa dele. Não é.

Você mudou seu método contraceptivo, e esse novo hormônio fez com que seu ciclo coincidisse com o de todas as suas amigas que não estão grávidas. Um mês com os hormônios mandando e desmandando em você; seu novo método contraceptivo te deu um cisto no ovário, que está te dobrando ao meio de dor, e te impedindo de praticar atividades físicas e dormir direito.

Você trabalha seis dias por semana , chegando a ficar 16 horas longe de casa e dos seus filhos peludos. Dorme no máximo - quando dorme muito e bem - seis horas por noite. Você está a menos de um mês do seu segundo mochilão pela América do Sul, e dessa vez, além de sua mochila, suas dúvidas e decepções, você levará uma amiga - ou será ela quem vai te levar?

Você lida com a frustração de não se exercitar direito; de não passar tempo de qualidade com sua família; de não ler todos os livros que gostaria; de não ter pego no seu violão sequer um vez apesar de pagar as aulas online; não lembra quando foi a última vez que fez uma sessão de depilação a laser; não arruma a cama há meses: ou dorme num ninho de edredons embolados ou sobre o cobre leito que você sequer tem forças para tirar.

Seus cabelos estão oleosos e marcados por elásticos que você usou para mantê-los domados. Você só se lembra de molhar as plantas quando elas murcham. Tem dia e hora marcados para tudo: supermercado, cozinhar, trabalhar, trabalhar e trabalhar. Alguns alunos estão cancelando as aulas e o fantasma do arrocho financeiro volta a rondar sua porta.

Você que é responsável por si mesma, 24 horas por dia, sete dias por semana. Qual a importância dele nesse caos que é sua vida? Perceba, você não sofre pela falta dele - que era sim bom de cama e sabia o que era um Currículo Lattes, tocar violão e falar inglês.

Você sofre pela falta que você faz em sua própria rotina Ele entrou em sua casa, mas não em sua vida: você manteve as portas fechadas e sabe disso. Você não se entregou em momento algum, porque você quer ao seu lado alguém que não critique seu carro, seus hábitos, seu peso.

Você quer alguém que, além de ser bom de cama, seja simplesmente bom. Que te pergunte como foi seu dia e realmente se interesse pela sua resposta. Você deu chances a pessoas que não tinham carro, emprego, casa, roupas de marca, e nada disso te incomodou. O que incomodou foi a falta de empatia, de cuidado, de tesão, de sinceridade. E por isso você não está sofrendo por ele. Ele não tinha nada para te oferecer: tirando talvez a parte do tesão.

Você não sofreu por nenhum deles. Sofreu por você. Por correr dia e noite, e não esbarrar num amor que te traga paz e te faça companhia. É triste ser imensidão enquanto os outros são tão rasos.

Mas aguente firme mulher. Troque os discos. Sambe. Desça até o chão, mexendo o popozão. Vá ser feliz, fazer novos amigos, e se perder nos abraços e risos dos antigos. Quem sabe um dia conhecendo o mundo, o amor não se reconheça em você: e então depois de tanto desacreditar você será a irmã do amigo que encontrou o amor, em uma feira de adoção de animais abandonados do outro lado do mundo.

cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu ...