quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Foi você

'Gata, pare de romantizar seu sofrimento!' Eu digo para mim mesma enquanto me olho no espelho, de cima de um salto que me faz flertar com uma versão de mim mesma de quase 1,80m de altura; maquiagem ainda digna e um olhar claramente cansado.

Acho que tenho ouvido Beatles, Pearl Jam e outras canções que falam de amor em demasia. Essa lavagem cerebral sobre amores, dores, e reencontros. Essas melodias lindas, com letras que falam sobre paixões que dão errado, apenas para nos levar ao lugar certo, na hora certa, para que o acaso nos jogue nos braços do amor de nossas vidas me lobotomizaram.

Claro que além das canções de amor, existem filmes, livros, a vizinha que encontrou o amor aos 68 anos de idade, a prima de segundo grau da sua tia que achou o marido do ano num app de paquera.

E aí a gente vai acreditando que pode acreditar novamente no amor. E quando seu mini relacionamento chega ao fim - sim, ele era baixinho e vocês nem chegaram a pôr um nome nesse movimento de pegação - você acha que essa dor que você carrega no peito é por causa dele. Não é.

Você mudou seu método contraceptivo, e esse novo hormônio fez com que seu ciclo coincidisse com o de todas as suas amigas que não estão grávidas. Um mês com os hormônios mandando e desmandando em você; seu novo método contraceptivo te deu um cisto no ovário, que está te dobrando ao meio de dor, e te impedindo de praticar atividades físicas e dormir direito.

Você trabalha seis dias por semana , chegando a ficar 16 horas longe de casa e dos seus filhos peludos. Dorme no máximo - quando dorme muito e bem - seis horas por noite. Você está a menos de um mês do seu segundo mochilão pela América do Sul, e dessa vez, além de sua mochila, suas dúvidas e decepções, você levará uma amiga - ou será ela quem vai te levar?

Você lida com a frustração de não se exercitar direito; de não passar tempo de qualidade com sua família; de não ler todos os livros que gostaria; de não ter pego no seu violão sequer um vez apesar de pagar as aulas online; não lembra quando foi a última vez que fez uma sessão de depilação a laser; não arruma a cama há meses: ou dorme num ninho de edredons embolados ou sobre o cobre leito que você sequer tem forças para tirar.

Seus cabelos estão oleosos e marcados por elásticos que você usou para mantê-los domados. Você só se lembra de molhar as plantas quando elas murcham. Tem dia e hora marcados para tudo: supermercado, cozinhar, trabalhar, trabalhar e trabalhar. Alguns alunos estão cancelando as aulas e o fantasma do arrocho financeiro volta a rondar sua porta.

Você que é responsável por si mesma, 24 horas por dia, sete dias por semana. Qual a importância dele nesse caos que é sua vida? Perceba, você não sofre pela falta dele - que era sim bom de cama e sabia o que era um Currículo Lattes, tocar violão e falar inglês.

Você sofre pela falta que você faz em sua própria rotina Ele entrou em sua casa, mas não em sua vida: você manteve as portas fechadas e sabe disso. Você não se entregou em momento algum, porque você quer ao seu lado alguém que não critique seu carro, seus hábitos, seu peso.

Você quer alguém que, além de ser bom de cama, seja simplesmente bom. Que te pergunte como foi seu dia e realmente se interesse pela sua resposta. Você deu chances a pessoas que não tinham carro, emprego, casa, roupas de marca, e nada disso te incomodou. O que incomodou foi a falta de empatia, de cuidado, de tesão, de sinceridade. E por isso você não está sofrendo por ele. Ele não tinha nada para te oferecer: tirando talvez a parte do tesão.

Você não sofreu por nenhum deles. Sofreu por você. Por correr dia e noite, e não esbarrar num amor que te traga paz e te faça companhia. É triste ser imensidão enquanto os outros são tão rasos.

Mas aguente firme mulher. Troque os discos. Sambe. Desça até o chão, mexendo o popozão. Vá ser feliz, fazer novos amigos, e se perder nos abraços e risos dos antigos. Quem sabe um dia conhecendo o mundo, o amor não se reconheça em você: e então depois de tanto desacreditar você será a irmã do amigo que encontrou o amor, em uma feira de adoção de animais abandonados do outro lado do mundo.

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