segunda-feira, 3 de maio de 2021

Escalada

 Escalar uma montanha foi uma experiência fantástica, eu poderia resumir assim, mas quantos detalhes, quantas pequenas vitórias, e momentos de angústia eu estaria negligenciando?


No meio de uma depressão que me tirou do rumo, e colocou minha vida de cabeça pra baixo, resolvi realizar o sonho de ir a Machu Picchu. Sem grana, sem alunos, rapei o resto da poupança e parti pra Cuzco, em minha primeira viagem solo. Sem falar espanhol, sem ninguém pra me salvar, nem seguro de viagem, fugi de minha própria casa, onde morava sozinha, pela primeira vez em 33 anos de vida, e parti rumo a ilusão de tentar me reencontrar. 


A viagem foi sabática - não me encontrei, nem me reencontrei, nem me construí, também não me destruí, só voltei com o sentimento de que em algum momento eu iria dar conta de tudo que precisasse dar conta.


Mas minha grande conquista, foi formada por pequenas derrotas: subir os mais de 5000 metros de altura da Montanha Colorida, ou .... Apu Winicunca


Saí do Brasil com o único objetivo de visitar Machu Picchu, todo resto foi improviso. No hostel onde me hospedei li sobre a tal montanha, peguei um mapa de Cuzco e saí perambulando sem rumo. 


Na Praça das Armas me ofereceram mil pacotes, 'conversei' em meu espanhol 'fluentito' com dezenas de pessoas, por fim, cansada, sem base para, fechei vários passeios com qualquer um. 


O passeio para a Montanha Colorida começava as 3 da manhã. Acordei cedo, com frio, com meus caramelitos de coca, e remédio contra 'soroche' e esperei  a van vir me buscar. Vi todas as pessoas saindo do hostel para seus tours, enquanto eu ficava pra trás. Quando ouvi um sobrenome parecido com o meu, e não havia mais ninguém, entrei na van, rumo ao meu de destino. Eu fui a primeira a entrar no veículo, e rodei por todas as hospedarias de Cuzco, pegando os demais turistas que me acompanhariam na jornada. Antes de pegar a estrada já tinha fracassado em manter uma conversa interessante com um alemão, e estava olhando pela janela, pensando quando o sol iria nascer.


De repente retornarmos ao ponto inicial, o hostel onde eu estava hospedada, afinal o sobrenome era Auby, da norueguesa que não acordou a tempo, e não Alves, a brasileira  que achava que não tinha mais nada a perder.

Temi que me deixassem pra trás, após a 'tanto' esforço... Por fim, levaram Auby e Alves, e nossos 12 anos de diferença de idade, e no fim ninguém teve prejuízo.


A viagem foi longa e parte dela por uma estrada estreita, de terra, que serpenteava agourenta por entre as montanhas. Doia-me a cabeça, pela altitude, o peito pelas incertezas, latejava o coração, por ser teimoso demais.


Ao chegar no sopé da montanha, nos instruíram sobre as dificuldades, sobre a possibilidade de subir com a ajuda de um burrico, sobre o tempo estimado, sobre os efeitos da altitude em nossos corpos, e como um ventre que pare um bebê, nos disseram: agora é com vocês.


A paisagem era linda, fria, preenchida de vento, cachorros felpudos e as cores dos Andes. Caminhei lado a lado com a moça do mal entendido: fracassei com o alemão, me dei bem com ela. Conversamos, rimos, falamos de cultura, relacionamentos, e sonhos... Os dela. Não pareciam me restar muitos naquela época. 


Dividimos o mesmo hostel, na verdade o mesmo quarto, mas a distância etária que nos separava fez com que ela dissesse: vou na frente, te encontro lá em cima.


Sozinha, como vim ao mundo, como me via então, segui. 


É assim, como na frase anterior, que me vejo na maioria dos dias. Mas segui, seguindo. O ar ficava cada vez mais rarefeito, e ao invés de buscar o topo da montanha, eu pensava: será que consigo dar mais dez passos? Quanto tempo até eu parar de novo? E eu andava, parava, tentava descansar sem quem meus pulmões obtivessem ar suficiente pra me aliviar, recomeçava. Mais teimosa que os burricos que empacavam com turistas em seus lombos, eu segui, mesmo sem acreditar muito.    


Dez passos, foram se transformando em cinco, as paradas ficaram mais longas, e por fim, de passo em passo, teimosa como um burro, sem crer, eu cheguei. 

Ainda suspiro ao lembrar de que cheguei, a vista era deslumbrante, mas ter chegado lá em cima, mesmo depois de tantas pequenas derrotas, mesmo sem preparo físico, mesmo sozinha, mesmo tendo que parar a cada passo, me ensinou que não vai ser como eu queria... Mas será. O final da escalada é sempre a parte mais difícil, dá vontade de desistir. Os primeiros passos da jornada, por vezes tão negligenciados, são tão parte da estrada quanto os da linha de chegada.


Quantas escaladas desde então? É que eu já perdi as contas de quantas vezes levei meus fracassos humanos para o alto da montanha, onde eu não conseguia sequer respirar. E mesmo sem ar, sem força, sem rumo, eu olhei pro horizonte, e soube que eu consegui. Eu cheguei até aqui, e mesmo errante, daqui a pouco eu também chego lá. 

cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu ...