domingo, 1 de abril de 2018

Soldado ao chão


Hoje é domingo, de Páscoa. Acordo após ter ido pra cama cedo, no dia anterior. Raridade eu ir para cama, e principalmente dormir no dia anterior: quase sempre caio no sono depois de já ter virado abóbora.
Acordei no sobressalto, sem alarme, mas com o latido dos meus cães que avisavam que já era 8:30, e que o rapaz que iria se livrar do mato do meu quintal que já ameaçava arranhar o céu chegara. E eu ainda estava vestida com meus trapos de dormir, com muito sono nos olhos, sem alimentar os canídeos e soltá-los no gramado para se aliviarem. Pulei da cama ignorando a coluna que lateja sem parar, e peguei o celular para olhar as horas. Eu ainda tinha mais 60 minutos para fazer tudo.
Enquanto me aliviava, aproveitei para dar uma olhada nas redes sociais, aproveitando os cinco minutos de ócio matinal, contados no relógio. Fui surpreendida por um texto bem realista cujo título já diz muito “Não me chame de guerreira” (link: https://microcelebridade.com/2018/03/12/nao-me-chame-de-guerreira/).
Enquanto eu tentava recrdar se eu tomara banho na noite anterior, antes de ser roubada pelo sono, assistindo um episódio de uma série, que também não lembro qual, fiquei pensando nesse rótulo que nós mulheres modernas carregamos como burros com viseira: forte, guerreira, heroína. Eu os ouvi com muita frequência nos últimos meses, enquanto eu chorava deitada no chão por ter fracassado mais uma vez, sem conseguir me reerguer. As pessoas diziam você é forte, você vai ficar bem.
O único pensamento que me ocorria era: me levante daqui, me dê sua mão. Sou fraca, sou frágil, não consigo sozinha, não sei o que fazer. Hoje percebo que segui, não porque era forte, mas porque não tinha outra opção. Guerreira? Sim, mas ao solo, após ter perdido a batalha, os anéis e muitos dentes para a vida.
Segui, e já consigo me abrir, com muita falta de vontade, para pessoas que me perguntam: o que você faz da vida? Suspiro, e em milésimos de segundo penso no que a vida faz de mim, e em que tipo de resposta esse ser a minha frente deseja. Não me importo com a segunda opção, e começo a rezar meu rosário: sou servidora pública federal (não trabalho na Cidade Administrativa); professora por formação e paixão, e atuo como autônoma na área nas 'horas vagas'.
Claro que vem sempre a cantada de “Hum, então você vai me ensinar...” a qual eu sempre respondo, com a pouca munição de paciência que as inúmeras batalhas me permitiram manter, e digo: claro, mas não negocio meu preço; qual a sua disponibilidade de horário? Se o carinha está realmente interessado, ele ignora o meu sarcasmo – o que quase sempre acontece; e continuamos com o papo de borracha, até eles saberem que: além de dois empregos, que consomem 46 horas da minha semana, passo pelo menos 3 horas do meu dia atrás de um volante; moro sozinha, e também sozinha cuido dos afazeres domésticos (lavo, limpo, cozinho, faço supermercado, sacolão – não arrumo a cama e não passo roupa 'porque a vida passa, e a gente nem vê). Cuido do meu time de futsal canino – comida, carinho, banho, passeio. Faço pilates, yoga, aula de violão, terapia. Visito minha mãe duas vezes por semana, e vejo minhas amigas. Ainda escrevo um blog.
Daí vem a pergunta, mas como você dá conta – e eu nunca tinha pensado de fato nisso, preferia 'cuspir' um 'nem eu sei' e acabar logo com isso. Mas o texto de hoje me fez pensar, e a resposta é: eu não dou conta. Faço porque eu preciso, e faço tudo porcamente.
Cozinho apenas aos domingos, e como a mesma comida (rica e balanceada, pelo menos) a semana toda, na minha estação de trabalho, em frente ao computador do trabalho. Mesma estação de trabalho que por vezes, serve de cama, tanto para eu dormir quando tive insônia na noite anterior, quanto para eu chorar, quando a angústia me transborda e eu soluço sem ao menos entender o porquê.
Meus cães, que passeavam todos os dias, e tinham seus pelos escovados e lavados pelo menos duas vezes por mês parecem agora membros de um grupo de reggae aposentados: gordinhos, e cobertos de dread, com as vacinas praticamente em dia. Saem para passear sempre que eu chego em casa antes das 21:00 e meu corpo não está muito dolorido das quedas. Mas recebem e dão amor como outrora.
Minha casa coleciona pêlos de cachorro; as vidraças estão embaçadas; há aranhas vivendo nos cantos, e os plafons se transformaram em cemitérios para insetos distraídos. Reclamo de cansaço durante a aula de pilates; anseio pela yoga nidra durante a prática semanal. Pratico violão só quando dá.
Lembro de molhar as plantas apenas quando elas já estão murchas, contrastando com o mato verde e até florido do jardim, do quintal, de minhas pernas, e de todas as partes de meu corpo que não depilei com laser.
Vou empurrando tudo com a barriga, que cresce a medida que recorro a comida e a bebida para 'dar conta de tudo', até último instante. Já me acostumei a limpar a casa antes da visita chegar. A andar com o carro na reserva. A não ter comida na geladeira, a dormir quatro horas por noite, a afagar meus dogs enquanto respondo minhas mensagens profissionais.
Acostumei-me a comprar roupas na loja baratona no caminho do estacionamento onde deixo meu carro para ir trabalhar, a ver minha mãe entre as minhas aulas. A fazer terapia apenas duas vezes por mês, porque não tenho grana e porque só tenho horário segunda-feira às 21:00. A ver meus sobrinhos bem menos que gostaria. Aprendi a sentir falta dos meus irmãos. Aprendi a ser mais ou menos em tudo. A baixar minha expectativa.
Dou conta de tudo porque aceitei que preciso seguir, mas que vou fazer apenas o que tiver ao meu alcance. Rio quando meu pão murcha após sair do forno; quando um cão come alguma planta. Dou 'bom dia' as aranhas que dividem os cantos comigo. Compro os legumes e frutas que posso encontrar no supermercado. Olho para minha cama sem arrumar há meses e vejo o livro que comecei a ler na noite anterior, sem a marcação da página onde deveria recomeçar, e penso: que bom, preciso mesmo relembrar o plano de Guy e Faber, e se há de fato um plano.
Somos guerreiros sim, detonados o tempo todo. Não está dando certo para ninguém, e aprender a conviver com isso é que nos faz dar conta: me transformei numa máquina de aceitar minhas limitações e fracassos. Se a barriga parece grande, é porque deve estar mesmo – troco a roupa para esconder, ou saio com a barriga a mostra mesmo. Afinal pelo menos parte de mim vai chamar atenção.
Entenda, não está perfeito para mim, nem para ninguém; eu não dou conta; estou dando cabeçadas por aí fazendo o meu melhor, mas só quando eu posso – às vezes faço meu pior, ou não faço nada e fico deitada no chão, coberta de baba de cachorro enquanto choro; aceitando que às vezes vou ser uma bosta mesmo; que isso não vai de fato fazer diferença nenhuma - importante é seguir tentando. E seguir tentando é seguir conseguindo sobreviver, mesmo se a conta não fechar; se você atrasar o pagamento; se cortarem a água e a luz; e se o carro parar na rodovia. Tens pernas.

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