sexta-feira, 2 de agosto de 2019

A estrada

Era a oitava vez que ela pegava o celular para saber se havia alguma mensagem; um “oi”, uma misteriosa ligação perdida. Olhou novamente seu e-mail, aquele meio de comunicação tão comum anos antes, e que lhe parecia uma forma mais dele de dizer adeus, ou de pedir para voltar.

Nada. Nem carta; nem sinal de fumaça.

Ela chegou em casa, a porta estava trancada como no dia em que ele fora embora. Andou lentamente a casa inteira, até chegar ao quarto – onde encontrou apenas a cama desarrumada, sinal que ele de fato não havia passado por lá.  Nem um bilhete de despedida. Nada. Sozinha ela olhou para o horizonte e pensou “então é assim que saímos da vida do outro”, e disse adeus.

Naquele exato momento ela entendeu que não importava como ela se sentia, e nem as razões que o fizeram querer partir – ele simplesmente quis, e não haveria nada mais doloroso que vê-lo amarrado a um lugar onde não desejava ficar: como loucos em um sanatório, onde jamais lhe sanarão as dores da alma; como um cachorro, a quem se chama de amigo, mas que se amarra em uma corrente, sob o sol, sob a chuva, comendo os restos que lhe foram jogados ao chão, ou em uma panela velha e sem alças.

Como a menina rica, deitada na macia e morna cama de seu quarto, mastigando doces agrados, mas que não pode ir ao parque com as amigas porque os pais têm medo de que seja sequestrada.

Nada pior que estar em um lugar que não é nosso. E ela disse adeus.

Foram tantas as despedidas. Em alguns casos eles apenas iam. Ela se perguntava, depois de dois dias esperando resposta a sua mensagem, se haviam morrido. "Talvez", era sempre sua resposta – sabia que fosse o que fosse, partida do plano mundano, ou apenas de sua vida – não havia nada que ela pudesse fazer. Fechava os olhos, e fazia uma prece, para que – fosse o que fosse – quem partiu estivesse em algum lugar melhor.

Em outros casos eles tentavam se explicar, ela ouvia, mas não havia razão mais linda e mais genuína que o humano desejo de partir – e partiam, mas sem partir seu coração. Por alguns dias ela se sentia pequena e insignificante; mala esquecida no canto do aeroporto. Abandonada, deixada em um lugar onde não a pudessem ver, onde ninguém a pudesse encontrar. Tomava o desejo do outro de seguir como algo pessoal - como se ela fosse tão importante assim, e o universo orbitasse em torno de seu umbigo.

Aos poucos foi percebendo que nada e tudo era como lhe parecia – não a estavam abandonando, estavam seguindo seu caminho – e não há nada mais lindo que ver alguém alçar novos voos. Partir rumo ao desconhecido, que lhe parece mais convidativo que o morno do sofá. A partida jamais fora um ataque pessoal contra quem ficou, mas uma tentativa de quem vai, um movimento da direção de se fazer mais felizes. Percebeu que as vezes eles partiam porque a estrada que ela trilhava, a de sua vida, era angulosa, movimentada, cheia de cruzamentos, festas, desastres, animais, restaurantes, cheia de bifurcações onde era necessário escolher. Dificil ser paralelo ali. Ela escolhia seu caminho, e às vezes sua rota a afastava deles. E estava tudo bem em ser assim.

Ela percebeu a cada vez que dizia adeus que seu coração não era uma gaiola onde pudesse prender as asas de alguém. Seu coração era galho frondoso, de árvore frutífera – nele, quem pudesse lidar com alguns espinhos e com a acidez de seus frutos, de aparência grosseira, como as doces lichias, poderia fazer ninho, mordada; poderia descansar brevemente; poderia recuperar-se das feridas de um longo voo migratório. Poderia até mesmo passar direto, sem perceber que ela era abrigo, afinal liberdade não é convite para ocupação.

Todos, um dia, partiriam (partirão). Cada um levando dela o que pudesse carregar – no fim, um pouco dela iria com eles. E um pouco deles ficaria com ela - inclusive a certeza de que quando se mete o pé na estrada, é porque carregamos conosco o desejo de explorar. 

Despregou o olhar da janela, e olhou para o chão. Viu que carregava em sua bota os finos grãos da trilha que acabara de percorrer. Imprimira seus pés na estrada, mas a estrada, com seu fino pó também a mudara para sempre, 

Sigamos, disse a si mesma, bem baixinho, para onde nos possamos encontrar

cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu ...