segunda-feira, 30 de outubro de 2023

cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu rosto, dilacerou-me o peito e mudou completamente o curso do meu rio?
Eu já acreditei que pudesse me curar, e esperava pacientemente, cuidando das feridas com amor, o dia em que tudo se regeneraria - mas nada tornou a ser. É fato que o sangue estanca, a dor pára de pulsar e a pele cicatriza: mas a história está para sempre posta ali, bem na superfície, e também decantada nas profundezas, junto com outras memórias lamacentas.
Diante do impossível, abracei minhas chagas, e, ao mergulhar bem fundo nelas, eu encontrei uma nova versão de mim, e nos meus olhos eu finalmente me enxerguei, irremediavelmente ferida, mas em paz. Eu era l, não mais apenas o que fizeram de mim, mas a estrada que escolhi após o açoite, em plena encruzilhada.
Depois de tanto tempo ansiado pela cura que jamais viria, eu consegui parar de correr, e parada, olhei ao redor, e simplesmente respirei. Olhei pra trás e vi a tragédia da qual eu havia escapado: a morte em vida, de quem, por fim, se abandona para se ver apenas refletida pelos olhos turvos dos outros - mas mesmo cega, eu tateara meu caminho pra fora, correndo, amedrontada, sem olhar pra trás.
A cura não veio, mas a paz se revelou - não como a ausência de dor, ou de conflito, não como passividade submissa, ou mar de calmaria que eu imaginara.

A encontrei silenciosa ao meu lado. Não sei por quanto tempo ela anciara por mim. Mas ela estava ali, mesmo em dias de batalha, nas minhas piores guerras. Finalmente eu percebi que a paz que eu buscava, chamando-a pelo nome errado (ela não era cura) é olhar pro lado, e ter a certeza que aqueles que se colocam ali - ombros se encostando aos meus, sentindo o medo e o calor exalando dos meus poros, sabendo de minha finitude e vulnerabilidade - me olham com olhos de amor, e ao me ver refletida naqueles olhos límpidos e bondosos, depois de tanto tempo, me vejo inteiramente refletida também, e tenho a certeza que também sou vista. Sentindo o calor de meus camaradas, que me sabem inerentemente falível, porque humana, sei que as mãos que levemente tocam minha pele, motivam minha caminhada. Sinto ainda que, mesmos que essas mesmas mãos não possam me proteger do meu destino, não é através delas que vou sucumbir.

Assim, a paz vai se enraizando em mim, preenchendo meus espaços, fazendo ninho entre o concreto que me solidificou. Sem planejamento e sem cura, ela cresce a vontade em cada espaço fértil, e novamente consigo respirar e portanto sorrir.

Tudo e tanto

Nada falta, e ainda assim... Anseio. Mas como nada falta, busco primeiro o rumo. 
Olho as estrelas, a lua e o nascer do sol, em busca de direção. Paro e tento ouvir o barulho do curso d'água mais próximo, para que o essencial não me falte. Preparo-me para partir, e no abraço de despedida - de repente - encontro. E percebo - nada falta, tudo transborda. E cada um só pode transbordar a si - me transbordo em excessos, gargalhadas e anseios. E já não sinto falta daquilo que transborda 'nada', e espalha ausência.
A falta me ensinou - é ali que se descobre o óbvio: quando nada falta, tudo transborda.

cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu ...