quinta-feira, 30 de março de 2023

onde deus

Quando deus saiu da minha vida, estávamos ambos feridos, quebrados. Ele bateu a porta violento, eu parei de bater palmas pra ele, e soube que ele jamais voltaria. Fiquei em silêncio enquanto o via sair raivoso, pela porta da frente, me ameaçando, me chamando de pecadora, dentre outras coisas.
Sabia que jamais poderia chamar de pai aquele que me punia, me agredia, que não conseguia me enxergar, ver minha dor, me salvar - ou pelo menos tentar. Ele bradou que eu não o respeitava - estava certo: eu apenas o temia.
A partir dali, eu me negava a adorar um deus que sabia que em algum canto, aqui e agora, uma criança estava dando seu último suspiro, entres soluços, pelas mãos sangrentas de alguém que se julgava semelhante aquele deus: prepotente, onipresente mas inoperante.
Compactuar com o aniquilamento da inocência, ou com injustiças era pra mim inaceitável - e ainda é. Não queria dividir minha dor, meus segredos, os últimos minutos antes de adormecer e meu despertar com aquele ser tão desprezível. Era melhor que fosse.
E foi assim que a fé que professei por uma vida se foi. E com ela, parte de mim.
Restou-me o silêncio, o vazio. A decepção de quem não sabe se foi enganada ou se enganou.

Então, num dia, quando já havia vida em mim - a presença divina preencheu minha tristeza solitária - enquanto eu chorava já prevendo a dor por vir, três passarinhos cantaram, e eu soube que não deveria me preocupar.

Entendi que a divindade morava no sutil, na linha que unia meus retalhos, aos retalhos de outro alguém, para  assim fazer brotar o novo. E mesmo depois de desalinhavados, e marcados pela agulha, ou esfarrapados por completo, em algum tempo, foi o divino que morou ali.

Percebi que a presença divina era o silêncio que nada dizia, ou fazia, mas que me ouvia, e me permitia ouvir meu pranto, que me deixava no chão, lambendo as minhas próprias feridas, ou fertilizando o solo para uma nova versão de mim.

 O sutil que morava numa ligação inesperada, no sorriso da desconhecida que se transformaria em colo, e proteção. 

A vida, teimosa em brotar, era o divino, a busca do equilíbrio, de rotas, de formas de sobreviver, ou de simplemente morrer em paz.

A porta então não se abriu, porque eu vi que a luz divina brilhava em mim, e jamais tinha me abandonado. Não era criação, caminho marcado, nem certo ou errado. O divino era criativo, fluido. 
E morava em mim. Eu soube que não poderia mais brigar com aquela força que era certamente mais forte que eu: abri meus braços e agradeci em prece - tudo ficaria bem.

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