A vida já havia marcado seu corpo de várias formas.
Era tão jovem, mas como quase toda fêmea, de quase toda espécie, já havia sido alvo de usos e abusos – era vista como mero objeto. Além dos toques lascivos em seu pequeno corpo desejado e apalpado, ela carregava hematomas agora invisíveis em sua superfície, porém eternos em sua mente. Marcas de um amor paternal aquebrantado, descontrolado, porém verdadeiro.
Ela não se importava com aquelas marcas, as carregava como cicatrizes de uma guerra contínua, a qual ela sobrevivera, até então, à todas as batalhas. Todavia, não se orgulhava delas, sabia que elas eram muito mais profundas que sua derme e que sua consciência, e que um dia, essas cicatrizes cobrariam com juros o preço por terem sido negligenciadas. Eram histórias para contar: após abertas, as feridas – tanto as do corpo quanto as da alma – devem ser lambidas sem descanso, devem tornar-se febre, dor, e um dia começarem fechar. Até que se transformem apenas na história – em cicatrizes claras ou sessões de terapia.
Cansada das marcas que a vida lhe dava, resolveu marcar-se também: com cores, traços, desenhos e a história que resolvia escrever. Tatuou seu corpo com dor, e com cor: a dor gostosa que antecede o gozo e que prova que a respiração ainda não parou; as cores que ela escolhia para pintar a própria vida – mostrando que podiam fazê-la sofrer, mas não podiam roubar-lhe o caminho.
Tomou gosto por suas escolhas, e cada marca era um sinal para o mundo de que ela era sobrevivente e que não deixaria de ser. Então o amor entrou em sua vida, e ela esqueceu os horrores da guerra: apegou-se a ilusão de que sempre haveria um colo, um abraço, uma mão para ajudá-la a se erguer. Os anos se passavam, as dores da alma causadas por seu sexo e por sua meninice deixaram de existir. Tornou-se confiante, e as marcas em seu corpo agora eram de mordidas e brincadeiras extasiantes.
Mas não há trégua que dure para sempre, e as cicatrizes que carregava dentro de si começaram a latejar a medida que o amor começou a abandoná-la, e com o piscar dos olhos a vida iludida já não existia mais: não havia mais colo, nem abraço, e a mão que deveria erguê-la afrouxou-se como um elástico velho. Foi deixada ali, por ele que sempre criticara as marcas em seu corpo, justamente aquelas das quais ela mais se orgulhava, aquelas que gritavam para o mundo: sou minha, e vou seguir sendo!
Sem saber, talvez até sem querer, ele tatuou na vida dela traços tão tortos e profundos que pintavam de preto até mesmo seus ossos. Seus olhos eram a dor estampada de agulhas desgastadas e enferrujadas. Toda sua pele era negror, tatuagens mal feitas, linhas de desamor.
Ela tratou de tratá-las para que parassem de doer: lambeu suas feridas abertas como um cão que gane baixinho após ser surrado; a febre tomou conta de cada célula do seu corpo, e a desorientou. Mesmo desorientada e quebrada seguiu sem se demorar no chão. Cada queda era um recomeço, apenas mais uma escoriação após ter sido cruelmente empurrada do quinto andar.
Agora segue cambaleante, com feridas semi fechadas e um coração partido – aberto para sentir-se vivo. Carrega esse coração na pele, para gritar ao mundo que mais uma vez ela sobreviveu, e que a dor que a marca hoje, amanhã será apenas mais um capítulo da história que escolheu escrever.
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