segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Traumas e cicatrizes


Traumas e medos: cicatrizes que mesmo após a ferida ter secado, fechado e de fato ter parado de doer, latejam. Lembram-nos dor e do mal, nos fazem sentir pena de nós mesmos, caídos ao chão, com lágrimas nos olhos, após a queda da bicicleta, ou o carrinho maldosamente aplicado no futebol do clube, ou ainda depois ter sido abandonado por alguém que parecia nos amar.

Carregamos no corpo físico, e no emocional, lembretes de incontáveis  desacertos, e carregamos em nossos ombros culpas que muita vezes sequer são nossas. Por vezes poderíamos ter evitado certos enganos, mas as vezes os enganos parecem tão certos: as palavras são assertivas, o sorriso escancarado, a mão sempre estendida a esperar pela sua. E essa mesma mão que esperava a sua, ou deveria te embalar em uma dança, canções de ninar ou em papel celofane te empurra. Pode ser que seu corpo esteja firme e não caia, e pode ser que despenque do sétimo andar e se quebre em mil pedaços. Não importa.

Importa que os pedaços estejam lá, e você possa reconstruí-los. Depois de cada tragédia de nossa vida devemos escolher onde colocar nossos cacos. Podemos escondê-los embaixo do tapete, e nos machucar cada vez que pisarmos ali – lembrando de nosso sofrimento. Ou podemos pensar que é impossível fazer um mosaico com azulejos inteiros. Após a quebra podemos escolher como organizar nossos pedaços – mas não podemos colar-nos sozinhos: é preciso uma grande dose de amor próprio, mas apenas ele não basta. Precisamos nos deixar amar. O amor dos outros nos amolece, faz com que a cola pegue melhor. O processo fica mais fácil, divertido, amoroso.

Podemos reconstruir-nos e colorir-nos. Podemos cobrir nossas marcas com flores, e fazer de nossa história uma história em quadrinhos. Tornar-mos-nos um gibi. Tatuagens para colorir e suavizar as marcas que vida nos deixou. Não podemos escolher nossas batalhas e nossas derrotas, mas podemos escolher como elas nos marcarão: no caos, só podemos controlar a torrente que vem de dentro, e ela pode elevar como um balão de ar quente, ou afogar-nos como um submarino tomado pela água.

Por vezes, não é possível nos manter em pé – mesmo com amor vindo de dentro e de fora. Despencamos ao solo, ou somos jogados lá, por mais que tentemos resistir. Somos abandonados; ficamos doentes; a morte nos leva alguém que é parte de nós. É preciso deixar-nos no chão. Descansar. Permitir que nossa lágrimas molhem o chão, nos esvaziemos da dor. Do chão se pode ter uma perspectiva inteira do céu. Mas não podemos ficar lá para sempre. Descanse, jamais desista.

Os baixos precedem os altos, e a vida vai assim. Precisamos aprender a conviver com tudo, e não pensar apenas nas quedas – elas devem nos dar ‘embalo’ para que possamos subir. E se não subir é preciso perceber a mão que tenta nos erguer. É preciso perceber nosso valor, nos deixar sermos amados – e perceber que merecemos esse amor.

Podemos, ainda que quebrados, e colados mil vezes, ser a purpurina que ilumina o carnaval de alguém. O brilho em seus olhos e seu sorriso. Não porque que sejamos inteiros, perfeitos e igual ao outro. Mas por que na bagunça que é a vida sejamos um peça que combina com a outra. Um coração de azulejos quebrados, porém vibrantes, cuidadosamente colocado ao lado de um livro de poemas de amor – nem todos felizes, nem todos reais, possíveis e mansos – mas todos de amor.

               

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