terça-feira, 4 de setembro de 2018

Pedaços tão pequenos quanto poeira de estrela (ou purpurina).

Hoje vou direto ao ponto. Quebrar paradigmas é quebrar-se em mil pedaços, é desconstruir e dói em cada rachadura. Dói antes, e é isso que nos faz quebrar, dói durante, quando cada pedaço daquilo que você passou uma vida acreditando começa a ruir, mas pode ser lindo, depois que cada um dos seus pedaços partidos se encaixar novamente em uma nova organização.

Existem pessoas que nascem, crescem, se reproduzem e morrem, sem mudar de idéia, deixando para trás descendentes férteis que vão propagar, além de seu DNA, as mesmas crenças, atitudes, a mesma dor e angústia, sem contudo conseguir romper os limites que os prendem ali – naquele grupo. Alguns se angustiarão sem perceber que é a lava da mudança que quer entrar em erupção e destruir tudo. Outros vivem mansos, quase apáticos, com escolhas e pensamentos que outros escolheram para eles.

Eu me quebrei algumas vezes, e pretendo quebrar-me muito mais. Na verdade esse texto é para descrever o agora, enquanto sinto-me ruir – com a certeza de que vou me refazer em uma estrutura mais leve, fácil de carregar, sem tantas amarras e expectativas.

Contudo, peço licença ao tsunami de agora – que já não me assusta tanto, para descrever um tsunami anterior: a perda de minha fé em um deus exterior, onipotente, onipresente, onisciente.  Fui criada dentro da igreja católica, e adorava as procissões da semana santa – a de ramos era minha favorita, catava um ramo de alecrim no quintal da casa da minha infância (e da minha vida adulta, até os trinta anos de idade) e ia sozinha para a procissão, cantar ‘Hosana nas alturas’ e balançar meus bracinhos roliços. Fiz a primeira comunhão sem que ninguém me mandasse ao catecismo dominical – arrastando a contragosto meu irmão do meio, que foi obrigado a ouvir – sua irmã é mais nova e vai fazer primeira comunhão antes de você. Se eu pudesse voltar no tempo, sussurraria pra ele ‘fode a porra toda, faz essa parada não. Toca o pé mesmo, e deixe essa sua irmãzinha aprendiz de papa hóstia aprender o que é legal’.              

   Enfim, fiz primeira comunhão, junto com meu irmão; crismei, tendo ele como meu catequista. E no intervalo entre os dois sacramentos, li todos os livros que chegaram até  minhas mãos, e que foram me enchendo por dentro até que todo aquele conhecimento me fez erodir de dentro para fora. Claro que tive a ajuda de algumas pessoas, que deram leves marteladinhas na lataria: um padre da igreja que eu freqüentava, e que só falava em dinheiro e contribuição, esquecendo-se do aspecto espiritual ; e meus dois namorados, ambos céticos.             

    Enfim, aos 28 anos declarei-me atéia pela primeira vez. Doeu. Senti-me órfã. Quem poderia então me ajudar nos meus problemas. Quem me falaria as respostas nas provas; faria meu time ganhar; salvaria-me de um acidente, ainda que eu fosse a única sobrevivente. Quem colocaria comida no meu prato, à custa de um continente africano majoritariamente faminto; quem me protegeria da violência, mesmo quando tantas outras crianças e mulheres são estupradas e mortas em cada canto desse planeta. Doeu o desamparo. Mas após algum tempo, percebi que aquilo que eu buscava fora, esteve sempre ali dentro de mim.                

Pela primeira vez eu percebi que EU, com o suporte forte dos meus pais, é que tinha me trazido até aqui. Eu havia estudado, me esforçado, cuidado para não engravidar. Eu evitara locais ermos, cuidara de minha saúde com comidas saudáveis. Eu me cerquei de pessoas do bem. Foram todas escolhas minhas, temperadas com uma generosa dose de sorte. Até aqui eu nunca estive no lugar errado, na hora errada. Depois da dor da perda da fé, o estupor.  Que bom é ser responsável por suas dores e delícias. É pesado, exige responsabilidade, porque você será livre para escolher, mas eternamente ligado aos desdobramentos do caminho que escolher, sejam eles bons ou ruins.                

Resolvi ser meu próprio deus, e ser o bem para todo mundo que pudesse – já que nenhum amigo imaginário pode fazer isso.                

Substitui  deus por amor. E aí, chegamos aqui. Esse sentimento preencheu cada espaço do meu corpo e passou a permear cada uma das minhas atitudes. Ainda não conhecia a famosa frase de Frida “onde não possas amar, não te demores”, mas vivia como se ela fosse meu moto desde o dia em que nasci.          

       Na cerimônia humanista de meu casamento, apaixonadamente celebrada por uma amiga irmã, a quem eu amo profundamente (sim, eu precisava de todos esses advérbios de modo), minha única instrução para ela foi: não diga a palavra deus; onde sentires o apelo, substitua-a pela palavra amor. E eu realmente acreditei nisso.             

    Hoje eu quebro o paradigma do amor. Não o amor pelo próximo, a empatia, a fraternidade, a solidariedade, a admiração. Não o amor que vai me fazer passar a noite em claro cuidando de um cachorro de rua; ou no hospital com minha melhor amiga. Eu acredito no amor que faz entristecer meu coração quando vejo uma injustiça, a violência, a fome, e o abandono. O que se quebra aqui,  não é esse amor, que não se ensina, mas se aprende na rua vendo ‘merda’ acontecer.                

Quebra-se aqui o amor dos meus pais, digo, o amor romântico entre homem e mulher. Aquele que somos criados, e principalmente criadas, para encontrar. O amor das princesas, que furam o dedo e dormem profundamente, ou comem uma maçã envenenada e têm o mesmo resultado, e ficam inertes até que seu amor venha, lhes beije, e só então elas possam tornar a viver. Somos convencidas de que só estaremos vivendo quando um príncipe nos escolher. E para isso precisamos estar sonolentas, hibernantes, adequadas. Eles nos escolherão, nós escolheremos um vestido de princesa, um local que nos lembre um castelo e selaremos um amor, para que sejamos felizes para sempre.                

Se você ainda acredita, talvez seja melhor parar por aqui. Este texto tem grandes chances de se tornar desconfortável e parecer (perceba: parecer) deprimente.              

   Continuando: eu sempre quis um namorado para me completar. Não me moldei muito para isso; não fui a mocinha delicada a espera do príncipe, portanto encontrei parceiros fora dos padrões – como tinha que ser. Éramos Mallory and Mickey Knox (se ainda não viu, e tem estômago bom, assista Naturally Born Killers, ou Assassinos por Natureza), sem os assassinatos e traições. Meus relacionamentos de longa duração eram baseados, de minha parte – é claro – em admiração e confiança. A atração sempre vinha depois, como um efeito colateral das duas primeiras características, e sempre passou por um sorriso bonito.                

Sempre acreditei em relacionamentos monogâmicos, porque eu sou “Monogâmica por Natureza” (ou preguiçosa mesmo). Sempre tive a expectativa de que cuidávamos um do outro, e que o bem estar de um dependia obrigatoriamente do bem estar do outro. Olhando para trás, eu não sei de onde tirei essa idéia estúpida. Até onde eu sei, relacionamentos são brigas de ego, onde cada um defende seu equilíbrio, e no fim um cede, engolindo com sapos ou pedras (Cidade do Sol) a vontade do outro.                

Por mais que eu tenha me esforçado para me encaixar no outro, e por mais que eu seja legal, inteligente, engraçada, independente... isso não vai rolar. Não vai ter um cara, ou uma mina, que vai querer ‘cuidar’ de mim, apesar de eu demandar muito pouco. Eles (as) vão manipular a verdade para conseguir o que querem, como qualquer animal lutando por sobrevivência, e isso acaba com um dos pilares básicos da minha definição de amor – A CONFIANÇA. Eu sei que por mais ‘tudão’ que eu seja, eu jamais serei o bastante, e que meu parceiro (a) dominado (a) por seus instintos mais primitivos vai procurar outros ‘parceiros (as)’, enfraquecendo o outro pilar o da ADMIRAÇÃO. Geral não consegue olhar pro outro e dizer, ‘puxa, esta filha da puta é do caralho.  Vou ficar aqui ó (ó: mineirêz para ‘olha’)’, e quando não for mais legal, vou falar: deu’. E só então sair para caçar outro ser humano do caralho.       

          Não, geral fica sempre com um olho no peixe e outro no gato, e percebi que, com muita tristeza, também estou virando isso aí. Conheço, admiro, mas sempre acho que não é o bastante, e enquanto estou pendurada naquele galho não me permito sossegar, olho para os outros, pensando se devo pular. Isso me entristece. Isso me afasta de uma faceta de minha personalidade que eu amava. A de enxergar o outro com olhos doces, e pouco julgamento. Aceitando seus defeitos e qualidades. Olhando-o com amor. Agora me sinto um funcionário do Guinness Book, procurando sempre os ‘maiorais’, afinal, eu não mereço pouca coisa. E isso é verdade – não mereço e não vou aceitar. A desconstrução do amor, deixou-me assim: desamparada, quebrada e irreconhecível.            

     Assim, após 34 anos, 6 meses e 18 dias buscando a tampa da minha panela, descobri que somos todos frigideiras fumegantes, famintas, formidáveis, fortes, fragmentadas, fascinantes, por vezes falaciosas, frenéticas, frustradas, fluidas, fúteis, fadigadas, feias, às vezes frias. Finitos em nossa solitude. Fim.

  Ps.: tampas não são necessárias, mas podem ser bem legais, principalmente aquelas de vidro, que você consegue ver tudo o que tem dentro, sem o risco de se queimar. Se você for uma tampa moderna, transparente, inteligente, visualmente palatável... podemos conversar.  Mas desconfio que esse presente a vida tenha me mandado e tenha caído em algum canto, no trenó do Papai Noel.’ Poxa Rudolf, não precisava ter freado tão rápido’.

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