sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Resgate

Se você já tentou resgatar um cão de rua, sabe o quão difícil essa tarefa é. Muitas vezes eles se encontram assustados, a beira de estradas movimentadas. Você reduz a velocidade, pára, oferece um petisco, fala com a voz mais macia e cândida que pode ter. Ora o perigo é tão eminente que nos apressamos, somos ríspidos e imprevisíveis. Não importa a estratégia, a reação é, via de regra, a mesma: eles se assustam.  E correm em linha reta ao longo da rodovia, ou preferem se jogar contra os carros, que aceleram, a permitir que suas mão toquem o pêlo sarnento que cobre costelas aparentes.

Você fica ali, olhando, ao lado do carro,  enquanto o vê se afastar correndo ou se despedaçar dolorosamente, sem nada poder fazer, sob a roda de um caminhão.  Ai quanta tristeza. É a dor de um coração despedaçado que se mistura ao asfalto, enquanto sua confusão é tanta que mal se lembra de respirar.

Você já tentou tratar as feridas de um cão surrado, seja pela vida, por outro cão, ou pelo mundo cão? Eu já tomei mordidas e ‘olés’, dignos das Copas de outrora, de cães que não tinham força sequer para erguer as orelhas, tão grande era o medo que eles tinham de confiar novamente.

O medo de não saber o que os braços que se estendem têm a oferecer é ensurdecedor, para dizer o mínimo. Esse medo, ora nos paralisa, ora nos faz pular e correr entre carros que não vão parar. Ele nos mutila. Torna-nos estúpidos e nos traz para o chão, tendo pernas e braços como pontos de equilíbrio.

A dor pregressa iguala animais humanos a animais celestiais (todos os outros que não ferem o próximo sem uma boa justificativa no mundo real). Somos todos cães que mordem as mãos que querem fazer um curativo, ou que fogem sem olhar para traz, não vendo que não havia óleo quente naquela vasilha, e sim um tanto generoso de ração.

Nossos desamores nos embrutecem, de forma que quando o afeto simples e direto chega a nós, apenas queremos fugir. Desconhecemos aquele conjunto de cuidados, de palavras mansas e verdadeiras, de olhares profundos. O medo pode ser redefinido como  a ‘certeza’ de uma nova decepção: afinal todos os outros que vieram antes mereceram seu amor e confiança, e  te desapontaram – seja  porque você esperou deles mais do que eles poderiam dar, ou porque eles te convenceram de que não eram tão pouco. De toda forma, só podemos nos decepcionar com  pessoas que em algum momento inspiraram nossa fé.

Então o medo é certeza.  Não a certeza da dor, que pode não retornar. Mas a certeza de que a verdade está oculta, até que ela se revela. Parece óbvio, né? Mas amamos o errado, achando que é certo, até o momento em que as cortinas se fecham e os personagens se revelam – são pessoas reais, e muitas vezes éramos meros espectadores de nossa vida.

Podemos não saber nos entregar a um abraço, por nunca termos recebido um; ou por termos sido abraçados forte demais após uma longa exposição ao sol. Mas eu acredito que abraços sejam bons, mesmo que nem todos os anteriores tenham sido. Eu continuo ansiando por eles, e me demoro feliz quando abraço minhas irmãs. Abraços não me assustam, então porque deveria me assustar uma nova relação? Sinto que abraços sempre unem, aquilo que relacionamentos podem quebrar.

Meu carro quebra, e sem querer me vejo a beira de uma estrada: vazia, sem buracos e ladeada por árvores. De repente um cão sarnento, judiado pela vida, se aproxima e lambe minhas mãos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

cura

Disseram-me que eu me curaria. Mas como me curar da própria vida, da própria história, daquilo que indiscutivelmente desenhou linhas em meu ...