segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Na dúvida

Ser mulher é estar sempre atenta.

Que mulher nunca apressou o passo ao perceber que no caminho de casa, após uma longa jornada de trabalho ou estudos (ou ambos),  um homem fazia o mesmo trajeto? Rezamos, corremos, seguramos a respiração e suspiramos aliviadas ao perceber que tais passos pertencem a outra mulher que, acometida do mesmo medo, se apressou para caminhar ao seu lado e assim se proteger e também te proteger.  Que mulher nunca se indagou quais eram as reais intenções no chefe, ao convidá-la para sua sala e oferecer chocolates finos, e encerrar a conversa te pedindo para que não falasse nada a ninguém. Mimo ou assédio?

Que mulher nunca retesou o corpo ao dançar com um cara na balada que parecia apertar mais o corpo contra o seu do que o necessário: seria ele um praticante de zouk  ou apenas mais um tarado sem noção? Pessoalmente já vivi todas as situações acima, e muitas outras além delas.

Nem todas a situações envolvem abuso e violência.  Vivi um relacionamento, por exemplo, em que achava que meu companheiro me dava a liberdade de ir e vir, mas na verdade o que ele fazia era evitar minha companhia. Eu o chamava para sair, e ele dizia para eu ir com minhas amigas. Eu trabalhava até as 21:00 de segunda a sábado e ele jamais reclamou minha ausência, ou apreciou minha presença quando eu desmarcava algum compromisso para ficar com ele. Não era tolerância, era negligência.

Ele sempre me respeitou quando eu não queria transar. E estava certíssimo. Eu também o respeitava quando ele não queria, até o prazo de uns dois meses, quando eu o pressionava e dizia que havia algo errado. Ele dizia que não, que eu era machista e que minhas amigas mentiam sobre a freqüência que seus parceiros a procuravam. Eu me indagava, vigiava, prestava atenção e no fim, apesar de estar atenta aos sinais, acreditava nele – afinal toda a indústria do sexo e filmes pornôs, e meus parceiros anteriores, e minhas amigas, e meu cachorro que tenta copular com tudo que se mova, deveriam estar errados quanto ao instinto sexual masculino.

Recentemente saí com um cara, que parecia mais ‘bronco’ do que meus padrões aceitariam, eu estava atenta, mas como não sou dada a preconceitos e ele estava muito preocupado com uma amiga minha que acabara de tomar um ‘toco’ e queria que a levássemos pra casa, eu dei uma chance.  Em um dado momento, ele usou palavras que me inferiorizavam, e quando pedi que ele deixasse meu carro ele me segurou com força e tentou me beijar. Eu resisti tendo a certeza que naquele dia eu seria agredida, pelo menos. Meu carro foi. Ele saiu raivoso, xingando-me de não lembro o quê e batendo a porta do meu nano carro com muito ódio... e eu com alívio.

Resolvi evitar homens para não ter que ser tão vigilante. Afinal, minhas idéias tendem a ser leves, e flutuam como nuvens num céu azul. Iludo-me fácil, e tenho o grave defeito de acreditar nas pessoas, mesmo sabendo que elas têm o grave defeito de ludibriar para conseguir o que querem.  Pois bem, fui menos atenta que deveria, e quando percebi  lá estava eu novamente dividindo uma refeição com um estranho. E depois a conta. E depois a cama. Mas voltemos a refeição: ele pegou um pedaço do que quer que seja e tentou colocar em minha boca. Gata linda, selvagem e escaldada que sou, eu disse: você não precisa me alimentar, eu sei fazer isso sozinha. E como sei – na casa dos meus pais fomos ‘treinados’ a ser independentes. Fui desmamada com pouco mais de um ano, já andava, e me aproximava de minha mãe dizendo ‘mamãe, mama!!!’ e ela respondia com ‘banana, filha?’ e eu independentemente caminhava até a fruteira e comia (plena como um minion) minha banana. Larguei o peito, e desde então aprendi a colocar na boca apenas o que quero. Inclusive os sapos que engulo, e as mentiras também.

Assim, “Carry, o estranho’ não se assustou com minha resposta, a qual ele APENAS respondeu “eu sei que você sabe se alimentar; mas será que você não está tão acostumada a ser maltratada que quando alguém quer cuidar de você, você não sabe como lidar?” Silêncio sepulcral foi a única coisa que eu consegui produzir. Abri a boca, não sei se de espanto ou porque sucumbi ao garfo que ele manteve elevado a minha frente, e acabei comendo o pedaço de sei lá o quê. Desde então ele tem me cercado de cuidados. E eu, realmente nada acostumada com isso, fico me questionando: ele tá me cuidando, ou me cercando?

Ele quer estar por perto porque aprecia minha presença, ou porque quer me controlar?  Eu estou tão cegamente apaixonada pela minha liberdade que não consigo distinguir ‘o que vem lá’. Sigo tentando intimidá-lo, assustá-lo, afastá-lo. Procuro defeitos que me façam fugir dele também, que me façam decidir que ele não cabe na minha vida corrida, e cheia de amigos, apesar de seu tamanho compacto. Estou atenta, mas sinto que não sei discernir bem o que está acontecendo, tanto dentro, quanto fora de mim. Enquanto isso sigo me equilibrando entre o ‘deus me dibre, e o quem me dera’. Clamando pela ajuda de “Inês”! Não conhece? “Inês Sá loucura de dizer que não te quero, vou negando as aparências, disfarçando as evidências”.

 

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