terça-feira, 28 de agosto de 2018

Apenas uma entre doze

É certo que hoje o sono não virá manso. Precisarei trazê-lo a força até mim, entorpecendo-me com comprimidos para que eu durma, e só então tenha a chance de despertar do pesadelo que, ainda, é ser mulher nessa sociedade.

Para que serve uma talhadeira? Talhar caminhos; quebrar rebocos e iniciar reformas. Recomeçar. Comecei o dia de hoje com a fé e a esperança de quem finalmente acordou a tempo, sem atrasos, despertador ou correria. Preparei-me para um dia de luta.

E perdi. Perdi o rumo, a fala e a fome quando me perguntaram se eu me lembrava dela. Perdi minutos tentando recordar seu rosto, e o rosto do marido, que deveria ter dado a ela 'um felizes para sempre' ou ao menos a chance de ser feliz.

Perdi quando perdi a paciência e disse 'não me lembro, mas o que houve?' E ouvi que ele a havia interrompido. Matou-a a golpes de talhadeira, por ciúmes, por fofoca, por razão alguma que justificasse. Não há justificativa para tamanha brutalidade.

Li a notícia em um jornal de quinta categoria, e enquanto o sangue escorria da tela do meu computador, as lágrimas teimavam em agarrar-se aos meus olhos: efeito do antidepressivo que ainda me auxilia no caminho de volta a mim.

Morro um pouco ao perceber que eles ainda nos dominam. Eles nos manipulam, nos usam, nos deprimem e nos matam. Não há justificativa para tanto ódio. Como podem dos desprezar tanto? Morro 12 vezes ao dia, a cada vez que uma 'maria' é assassinada. Morro também quando elas não entram nas estatísticas, ou não morrem, mas são queimadas, aleijadas.
Elas são destroçadas emocionalmente e fisicamente. Na verdade, somos.

Somos feitas de amor, e aceitamos até mesmo aquilo que apenas se disfarça disso: ciúmes, possessividade, controle, abusos, assédios, sexo bom. E permitimos que façam conosco o que não se deve fazer, o que não se deve sequer pensar.

Ela se foi. E nada a trará de volta. Ele em breve estará a solta, e uma de nós novamente acreditará que é a exceção. Que ele não é assim tão agressivo. Que ele bateu, assassinou a ex companheira, mas que ela deve ter dado motivo. Que EU sou diferente.

Nos afastamos de nossas irmãs, achando que somos melhores e diferentes, que eles estão melhores e diferentes, e nos tornamos estatística. Dor no peito da outra. Lágrimas, poça de sangue no chão. Foto 3x4 no jornal.

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