segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Imagino

Quando vier não estarei pronta. E talvez nunca esteja. Portanto nadará em outros rios, descansará e crescerá em outro ventre.
Talvez esse ventre seja um local menos amoroso e aquecido do que eu desejo para você. Entretanto é necessário que seja assim. Seu receptáculo a rejeitará na carne, e você nascerá para esse mundo de dor. Rasgando-a ao meio, trazendo choro, sangue, agonia e só. Sua genitora a rejeitará no coração, na biologia que diz que todo pequeno deve ser cuidado, amado, nutrido até que parta para suas próprias andanças.
Mas com você não será assim. Partirá em suas andanças antes mesmo que seus olhos estejam bem abertos e veja que há mais além da dor nesse planeta redondo com tantas margens. Sinto dizer que você pousará em muitas delas.
Viverá a margem como todas nós, por ter nascido menina. Viverá a margem como tantas de nós, por ter nascido pobre. Viverá a margem como muitas meninas, por ter nascido negra. Viverá a margem como muitas crianças, por ter sido abandonada. Viverá a margem por não se enquadrar nos padrões. Mas eu te perguntarei: afinal, que peça de quebra-cabeças pode caber em todo lugar?
Contudo você receberá colo. Calor para seu corpo pequenino e frágil. Alívio para uma essência que talvez tenha sido envenenada antes mesmo de nascer. Você será alimentada, banhada, lavada e esperada. Talvez seja castigada, surrada. Queira o universo que não; desejo com lágrimas nos olhos que não; sinto uma dor no útero que não te gerará para que não: mas talvez seja abusada em sua pureza.
E por tudo isso, e várias outras dores que não consigo imaginar: eu te quererei. Porque as dores não tirarão de você a sua essência, aquela que fará com que, apesar de eu não estar pronta, você seja a peça de quebra-cabeças que faltava em mim. E nos completaremos. Ambas tortas, ambas quebradas a sua forma. E você me construirá a cada dia.
Eu já sinto muito pelas dores que não poderei evitar. Todas. A rejeição; ou rejeições. A fome do corpo e da alma. As noites sem beijo e sem história. Eu já sofro por imaginar os olhares que receberá por ser tão diferente de mim em suas formas, cores, origens. Perdoe-me, eu não pude evitar.
Eu não pude evitar seu sofrimento pregresso. E não poderei evitar o medo na primeira noite em nosso ninho; as lágrimas em seus olhinhos na primeira vez que eu pentear seus cabelos – os imagino tão enrolados quanto minhas idéias desembaraçáveis; não poderei evitar os comentários na fila do supermercado e em seu primeiro dia de aula. Talvez eu não possa evitar que você seja criada em um lar sem pai e cheio de cachorros – mas garanto que será cheio de amor.
Esse lar, que ainda existe apenas no campo das idéias, já se decora para você. E há amor nas paredes, no chão, nos copos de plástico, nos pregos que segurarão suas fotos na parede. Provavelmente não teremos fotos de seus primeiros anos, aqueles que fingimos preferir que não tivessem existido. Aqueles que trouxeram sua estrada até a minha. Que fizeram de sua estrada o caminho mais lindo que vou percorrer.
O percorrerei com coragem, apesar de não estar pronta, segurando sua mão na minha até que você não me precise mais, até que meu coração não bata mais, e que nele só reste uma tatuagem contendo seu nome.

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