quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Pomar

Uma vez eu te disse que era impossível germinar, e dar frutos, estando ainda em nossa origem, em nossa árvore, atado as nossas raízes.

E você disse, não quero romper, quero somar! E eu carrego essa conversa, enterrada em meu peito.

Eu tentava te tirar do pé - fruto bonito, pronto. Bastava cair, e permitir que a vida e as condições te guiassem. 
Ao chão, aos poucos, você deixaria de ser fruto, e suas sementes se espalhariam, e você seria árvore, e seríamos todos um lindo pomar. 

Você achava que eu queria te ferir, enquanto te sacudia, te cutucava - e olha que nem lhe arremessei pedras. Você quase veio.
Mas preferiu ficar - junto aos galhos que te protegem, e também te escondem - definem. 

O fruto só cai da árvore uma vez, dói, mas  passa. Tanto pro fruto caído, quanto pra árvore vazia. Passa.
Enquanto ele apodrece ao chao, não sabe que fertiliza o solo  onde vai brotar seu amanhã.
O broto não sabe o que há fora das rígidas paredes da semente, e é preciso força, coragem e tempo pra romper. Ao sair da terra, o broto é frágil - mas vivo e capaz de ser árvore grande.
É preciso vir de mangueira para ser mangueira - frondosa, frutífera, cheirosa, mas é preciso que a árvore que nos deu a vida  não faça  sombra demais, nem de menos. Ela precisa deixa ir, deixar crescer. E nós precisamos ser firmes, fiéis as nossas raízes, mas determinados a espalhar nossos galhos, folhas, pólen. Florecer. Frutificar. Fertilizar.

O fruto não cai longe da árvore, eu disse.  Não a você, mas para as minhas raízes. E ao cair, já madura, rolei para o mais distante que pude. Também tive medo, também quis voltar. 

Hoje, árvore mediana que sou, suporto, sem sua sombra (para o bem, e para o mal) as intempéries da vida. Só. Recebo mais pedradas, sou presa fácil de formigas, e pica paus. E te vejo fruto perdido na folhagem. Escondido. Dependente. 

Aqui, quase tombo. Perco as folhas, e vejo vergar meus galhos, enquanto dou toda a minha seiva para fazer vingar nosso fruto - para que, em tempo, ela não se some a mim, nem a você, e também não suma - mas que possa ser tudo o que a semente da mexerica quiser.

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