quinta-feira, 17 de maio de 2018

Quinto Elemento

Escrevi esse texto há dois anos, para um cão de rua que cuidava...
17/05/2016

Já havia me acostumado com ele. Alimentei-o ontem de manhã; mas a tarde, ao chegar do trabalho ele não estava mais... nem suas vasilhas de ração e água, nem a casa improvisada feita com carinho. Na caixa de schrödinger, que nesse momento é meu coração, você foi resgatado, está vivo e feliz - opto por silenciar a outra possibilidade.
Ah esses cães vadios! Queria tanto acabar com eles, e transformar as ruas em um lugar melhor.

Eles chegam, vagabundos, sem raça, sem banho, com muitas pulgas ou outros problemas, e se a porta estiver aberta vão entrando sem cerimônia mesmo; não dá para esperar muito desses peludos sem pedigree.
Eles chegam pela porta que esquecemos aberta e  entram em nossas vidas e reviram tudo: as latas vaziam que costumavam ser nossos corações; mastigam os sapatos envernizados e desconfortáveis que usávamos para impressionar. Esvaziam nossas contas bancárias, e se grudam como seus carrapatos em nossa rotina.
Tê-los em nossas vidas é como poder coçar o comichão causado por sarna; mesmo sem levantar as patinhas eles simplesmente marcam território em nossas vidas.
É! Contudo existem aqueles que entram em nossa vida e reviram nosso coração mesmo sem entrar em nossos lares. Cães de rua que começam a fazer parte da paisagem, de nosso dia-a-dia. Cães que nos roubam o pensamento quando a chuva cai lá fora, que nos fazem sair de casa num domingo a noite só para checarmos se estão bem. São aqueles que não entram apesar das portas abertas de nossos corações, e que nos alimentam com carinho. Nos protegem com um amor leal no olhar. E assim como entram em nossas vidas, sorrateiramente como quem rouba um salsicha, eles se vão. Não deixam mensagem, nem rastro, só uma marca da pata suja no seu jeans, e a coleira que usava quando foi abandonado por seu antigo dono.
Deixam a esperança de terem sido resgatados, de terem encontrado um quintal para cavar e tentar chegar à China. Mas deixam um lugar vazio onde antes jazia o pote de sorvete com água, que servia para matar sua sede.
Se soubesse teria deixado minhas mãos mais negras na sujeira do seus pêlos, teria te dado mais salsichas e permitido que me arranhasse mais com suas unhas ansiosas.
Espero que tenha sido resgatado e que ganhe um local para guardar, para cuidar e onde a lealdade seja sempre retribuída com um afago duradouro. 
E que as ruas se esvaziem de luzes vira-latas, e que estas possam iluminar mais corações.

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