sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Asas

 A gente cresce, e imitando a natureza tenta ser tão independente quanto o passarinho que a mãe empurra do alto da copa de uma árvore e grita, por trás de um canto doce: “voa filha da puta, se você não bater a porra dessas asinhas, engordadas com meu esforço hercúleo para te trazer insetos, vai se esborrachar lá embaixo e atrapalhar meus planos de deixar descendentes férteis.”
Sei bem que nós humanos temos demorado cada vez mais para largar o ninho, e usar as asinhas, que ficam cada vez mais gordas e impróprias para o vôo. Mas alguns de nós ainda são treinados para não espatifar no solo, e conseguir arranjar o próprio rango – na melhor das hipóteses ter seu próprio ninho, e para de piar pedindo socorro cada vez que um probleminha ocorrer.
Vivi na casa dos meus pais por três décadas, porque queria sair e voar sem medo de ter que voltar. Sei que a cama estará sempre feita, os braços abertos, o café na mesa. Mas sempre sonhei com a liberdade de voar em piruetas, não seguindo o curso reto, planejado traçado para mim. Não há nada errado com a trajetória de voo que sonharam pra mim, mas ela é diferente do que eu quero fazer. Eu quero um voo que mais pareça uma queda livre, de uma liberdade que gela o coração, dói o peito, paralisa temporariamente as asas, que voltam a bater com vigor antes da queda – estão programadas para sobreviver a qualquer custo, apesar de qualquer dor, perda ou desengano.

Quero a emoção camicaze dos voos que vão, e talvez não voltem. Por isso as conversas sobre meus rumos sejam tão difíceis. Não os tenho agora, quero voar em círculos, pousar em árvores altas e saltar, me entregar ao ar. Quero voar ao lado de aviões, drones, pipas e balões, sem pensar se me encaixo, sem pensar em quanto tempo vou ficar.
É preciso entender que eu TENTEI – voei seus voos: achei um par, fiz meu ninho, e lá tentei existir. Perdi minhas asas, meu canto, caí do ninho. A tempestade veio e disse: voa filha da puta. E eu gostei. Gostei dos imprevistos, de caçar sozinha, de fugir de gaviões, raios, gatos e da fome. Da minha trajetória sem destino, de quem apenas voa por ai, aproveitando o vento.

Tenha certeza que se precisar, eu voltarei, por mim ou por vocês, mas deixe me ir por aí, batendo minhas asas a esmo, sem torre de controle, sem regras, sem conselhos. Se a queda for irreversível, talvez quebre minhas asas, mas aprenderei, outra vez, a caminhar por aí.

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