quarta-feira, 6 de maio de 2020

Demônios e assombrações


Existem casas assombradas. Lá, nem as aranhas querem tecer aquilo que lhes dá na teia. Os porões são trancados a sete chaves, as escadas de acesso foram queimadas, e suas janelas emparedadas. A mobília foi um dia destruída por cupins, e as velhas cortinas esfarrapadas pelo vento, que já não tenta arejar seus cômodos – nem as traças querem saber dos retalhos então deixados para trás.
            As manchas nas paredes contam histórias, as rachaduras e tantas outras marcas também. A água tenta insistentemente entrar, infiltra-se, lavar dali, de fora para dentro, ou de dentro para fora, todos os assombros, ainda que para isso, tudo tenha que destruir. Mas tudo está lacrado.
É no sótão que os segredos se amontoam, fantasmagóricos, insanos, amorfos. Encaixotados tão organizadamente que se esquece que eles estão ali. Ocultos como um vírus resistente, eles  tudo adoecem e destroem. São eles,  fantasmas deformados e também sem forma, que moram nos pensamentos mais recônditos. Pouco se lembra de como foram pousar ali.
            Em quais traumas pegaram carona para ali virem fazer morada, definitiva e destrutiva como uma doença incurável? Invadem cada pedaço de terra, mesmo que encobertos sob os tapetes outrora ricos, e hoje tão empoeirados, que sequer se diferem da madeira solta do assoalho.
            Lares assombrados, corpos possuídos por demônios que insistimos em carregar. Assomam-se pesados em nossos ombros, agrilhoam-se famintos em nossos tornozelos, alimentando-se de nosso falso senhorio. Fingimos que os controlamos, que podemos mantê-los em nossos cantos e caixas, mas são eles quem jogam dados com nosso descaminho. Não existe exorcismo quando estamos possuídos por nós mesmos. É a dor que nos arrasta as cadeiras; é o antigo sentimento de abandono que sopra o vento gelado, que não permite que a lareira seja acesa, que as mãos se aquecem, e que os pés deixem de ser frios.
            É a raiva presa, exilada em esquecido canil que se torna selvagem, e quase mortal. E para quem apontamos esta letalidade? Nossos fantasmas não morrem por inanição quando os guardamos, ignoramos, ou tentamos domá-los. Eles se tornam senhores vorazes, desgovernados – transformam-nos em carrascos de nós mesmos.
            Nossos demônios nos possuem, e pronto. Não os controlamos, e assim também eles não deveriam nos controlar, com suas unhas amareladas que se quebram ao se agarrar ao solo. Não. Tente controlá-los e eles te sugarão para um redemoinho em águas profundas de onde possivelmente você não conseguirá sair sem antes se afogar. Tire seus demônios para dançar, seus medos, suas mais animalescas emoções. Sim, convide-os todos para se sentarem contigo a sua mesa de jantar, sirva-as de boa comida e bom vinho, tire sua melhor louça do armário para servi-los, ou coma, sem cerimônias, com nuas mãos.
            Não esconda o que te assombra, vista-se com seus retalhos, enfeite-se com eles. Ao vento, o cheiro de mofo é menos opressor. Abra as portas do último andar, jogue fora o que conseguir, deixe ir. Espalhe as caixas que ficarem, o solo não vai ruir se você souber equilibrar todo esse peso que acumulou sem saber.
Escancare a tragédia que acontece entre suas paredes, negá-las não impede que ela aconteça diariamente e lhe roube o sono. Todos nós carregamos nossas posses e possessões, acumuladas, vividas, tatuadas em nossa carne.
Negue seus fantasmas e demônios, e eles lhe assombrarão para sempre, mesmo que ninguém os veja. Convide-os a sua mesa, a sua cama e eles deixaram de ser visita desagradável – serão  meras manchas brejeiras na madeira envelhecida da sala de estar.

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